terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A lição da ouvinte


Dona Ondina gostava de dizer – eu nunca soube se ela própria era a autora da teoria ou se a ouviu em algum lugar: Música clássica a gente primeiro começa gostando das sinfonias, aquela festa, orquestras enormes, cordas, metais, madeiras, percussão, aquilo tudo emociona a gente, bate aqui dentro do peito e ressoa, impressiona; depois a gente passa a gostar dos concertos para orquestra e instrumento solista, piano, violino, violoncelo, oboé, fagote, clarineta, mais raramente um contrabaixo, ou uma viola; ainda ouvimos o som da orquestra, que de repente dá vez a um único instrumento, que brilha sozinho e nos comove; por fim, o que nos impressiona mesmo é a música de câmera, os duos, trios, especialmente os quartetos de cordas, que reproduzem com dois violinos, uma viola e um cello todos os matizes da orquestra; há também os quintetos, os que incluem o piano são belíssimos, os sextetos, e por aí afora.
            Hoje, concordo com ela, ouvinte amadora de música erudita, mulher observadora, sagaz e de bom gosto. Porque conservadora ao extremo, suas escolhas terminavam em Brahms; começavam com Bach e Mozart; chegavam ao ápice com Ele, Beethoven; terminavam em Johannes Brahms. Nada de Béla Bartók, Stravinsky, nem mesmo os magistrais quartetos para cordas do nosso Villa-Lobos escapavam. Muito barulho, muito barulho, atordoa a gente, dizia ela.
            É possível que o conselho de Dona Ondina tenha alguma serventia para os iniciantes. Embora nunca tenha tido qualquer aprendizado formal em música, considero-me assíduo ouvinte de música erudita nos últimos 40 anos. Pois não é que recentemente me surpreendi ao voltar a ouvir os quartetos para cordas de Mozart! São mágicos! O quarteto em dó maior no 19, K 465, apelidado Dissonante, concluído em janeiro de 1785, continua sendo meu preferido, particularmente pelo seu início, onde as dissonâncias são mais evidentes. O adágio que serve de introdução a este primeiro movimento está séculos à frente de seu tempo; quem nunca o escutou jamais o identifica como sendo Mozart; quem já o ouviu, nunca esquece. Penso que nem mesmo o compositor aguentou tamanha inovação, e logo volta ao seu estilo clássico inconfundível, ainda no Allegro do primeiro movimento. (Se o leitor dispuser de tempo, ele pode ter agora mesmo uma pequena amostra com o Gewandhaus Quartet: http://www.youtube.com/watch?v=6Zcy-zs9jmw&list=RD7n8BZT_1H8M , com mais de 56.000 acessos pela Internet.)
            O ouvinte que se interessar pelo quarteto de cordas terá um mundo inesgotável pela frente, incontáveis os compositores que experimentaram este formato musical. Quando ele chegar aos últimos quartetos de Beethoven (Dona Ondina, minha mãe, não chegou a apreciá-los, embora fossem Dele), passando por Bartók e Villa-Lobos, poderá voltar a Haydn e Mozart, e começar tudo de novo. Tarefa para uma vida inteira!

Laranja mecânica


O pai foi amante incondicional de Beethoven. A filha, por tudo que sofreu na infância, nutre profundo ódio por Beethoven.


ciclos


finda a primavera
mosquitos alvoroçados
o verão chegando

Foto: A.Vianna, fundo de quintal, dez. 2013.

Diálogo de segunda-feira


...
– pela cara, você é vascaíno...
– e você torce pelo Fluminense.
– acertou.
– e você, como adivinhou?
– tá na cara.
– é mesmo.
– que merda, não?
– merdíssima.
– como foi acontecer?
– jogamos mal.
– culpa dos técnicos ou dos jogadores?
– de ambos.
– no último jogo, que lambança vocês fizeram!
– foi mesmo, coisa feia, estamos sendo chamados de vândalos.
– liga não, esta palavra agora serve pra tudo que não se explica.
– e você, por acaso sabe a explicação?
– coisa de gente, desde sempre.
...

Gesto histórico

A foto do dia.


Obama aperta mão de Raúl Castro no funeral de Mandela.


Foto: Getty Images

Carta de Natal às filhas


Queridas filhas,

não haverá de me causar surpresa se ocorrer algum estranhamento, produzido por uma carta de Natal dirigida a vocês, que bem conhecem minha descrença na religião, ou nas religiões melhor dizendo, incluindo o tal “espírito do Natal”. (Feliz Rainer Maria Rilke, homem religioso e grande poeta que, durante 25 anos consecutivos, de 1900 a 1925, enviou uma carta de Natal à sua mãe.) Portanto, não me peçam explicações ou justificativas, muito menos coerência; nem da arte de Rilke posso dispor. Apenas, aproveito o momento para senti-las mais próximas, enquanto escrevo a vocês, neste fim do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2013.
Os dias em que nasceram as minhas filhas estão entre os que considero os mais felizes de minha vida. A nossa convivência ao longo desses anos foi o que de melhor obtive nesta vida. Meu pai, por razões religiosas, dizia que este é um mundo de expiação e provas. Concordo com ele quanto ao efeito, mas por causas bem diversas, penso que se trata de um mundo onde predominam as frustrações, e não busco qualquer sentido que possa explicar tal afirmação. A não ser a falta de sentido mesma.
            Pois a presença de vocês empresta sentido à minha vida.
            Como em todas as relações humanas, ou entre humanos para ser bem preciso, há momentos de dificuldade também entre pais e filhos. Não poderia ser diferente, mesmo considerando o especialíssimo fato de que se trata de filhos e seus pais, todos humanos, consequentemente imperfeitos na origem.
            Borges afirma: “Uns quinhentos anos antes da era cristã aconteceu na Magna Grécia a melhor coisa registrada na história universal: a descoberta do diálogo”. Se tal descoberta é tão antiga, por que ainda é tão raro que seja praticada, tão difícil de se realizar? Por que os homens têm tanta dificuldade para aprender a conversar? Isso também se aplica a pais e filhos, e me incluo de corpo e alma em ambas as categorias, filho e pai.
            Há razões particulares para que pais e filhos, em determinadas circunstâncias, tenham dificuldade para estabelecer o diálogo. Isso pode parecer paradoxal: o amor não seria então suficiente para garantir o permanente diálogo entre eles? Não é suficiente. Onde há muito amor também há ódio, isso é humano e inevitável, mesmo em se tratando de gente do mesmo sangue.
            Admitir sentimentos menos virtuosos em nós mesmos, até com relação aos que mais amamos, pode nos facilitar o retorno ao diálogo, com a vantagem de nos propiciar algum aprendizado a partir desta experiência. Sem moralismos. Triste é quando nada aprendemos.
            A palavra perdão está gasta, pelo que costumo chamar de “sentimento religioso”. Prefiro a expressão “retorno ao diálogo”. Nisso o amor pode ajudar! O amor é um sentimento facilitador para a aproximação das pessoas. O ódio afasta, o amor aproxima. A oscilação entre estes dois sentimentos básicos do ser humano não deve ser vista como um problema, mas como oportunidade para aprender, enquanto estivermos vivos.
            Meu desejo é que tal oscilação incline-se cada vez mais para os sentimentos amorosos entre nós, o que há de preservar a concórdia, a paz e a tranquilidade para nossas vidas.
            Do pai que as ama muitíssimo, com renovado carinho,
andré.