terça-feira, 30 de junho de 2020

Tolerância

Frase do dia


“Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal principal e distintivo de uma verdadeira igreja.” 

John Locke (1632-1704) 
Carta acerca da tolerância 

5 microcontos do Moisés


Imersão

Criou cães por toda sua vida para cercar-se de amor e morte. 



Humanização?

Depois que tive cachorros, comecei a gostar das pessoas.



Algo falta

O velho nunca se negou a dar esmolas. “Não há fraudes em pedintes”, dizia. 



Dialeto

Não queira ser capaz de entender o que falo. És feliz demais, sinto muito.



O começo

– Amigo, a minha vida acabou. Câncer de próstata, filho maluco e o casamento indo pro brejo.
– Aguente firme. Agora é que vai ficar bom.


                                         Moisés Lobo Furtado


Observação do blogueiro: O homem é um gênio!

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Julieta ilumina o jardim





princesa Julieta
toma seu banho de sol
e ilumina o jardim


Foto: AVianna, jun 2020

bem-te-vi

Clique para ampliar





estação da seca
retorna o bem-te-vi à fonte
encanta o jardim



Foto: AVianna, jun 2020
Nikon 7200, Lente Nikkor 300mm

sábado, 27 de junho de 2020

E agora...


...
– você viu o resultado da pesquisa?
– que pesquisa?
– sobre a inteligência do Presidente.
– não vi.
– pois é, impressionante!
– e daí, diga logo!
– a maioria acha que o Presidente é pouco inteligente.
– é mesmo?
– é.
– e agora?
– agora ...
...

Vestida de noiva


Nada mais intrigante para mim que o fenômeno da memória. Guardo comigo dois antigos álbuns com encadernação de couro e duas caixas de sapato repletos de fotografias antigas. (Hoje não se imprimem mais as fotos no papel, o que é uma pena, pois permanecem quase invisíveis, perdidas na memória do computador.) Em sua maioria, são fotografias das famílias de meus avós pais tios tias primos, o pai quando solteiro a mãe solteira os amigos dos pais e dentre elas estão algumas pessoas completamente desconhecidas para mim, e assim permanecerão para sempre, desconhecidas, já que não há mais quem as possa identificar. Diga-se logo, sinto enorme prazer em ver e rever essas fotografias, mesmo sem saber de quem se trata.
Uma delas, em tamanho grande, preto & branco 18 x 20, prendeu minha atenção; há mais ou menos um mês deixei-a sobre minha escrivaninha, bem à vista, pois algo me dizia que eu conhecia aquela mulher.
Sim, a foto é de uma mulher, vestida de noiva.
A pele muito clara, cabelos negros, o véu preso na cabeça, um leve sorriso na boca bem feita, o olhar altivo, distante, a mulher está sentada na mureta de uma escada que talvez dê acesso à casa da família, algumas hortênsias compondo o quadro, ela faz  pose para o fotógrafo profissional. (O papel da fotografia é de ótima qualidade, a imagem está muito bem preservada.) 
            Durante anos e anos eu olhei olhei olhei para aquela imagem e repeti Não sei quem é.
Agora, a fotografia exposta na escrivaninha, passei a observá-la com maior frequência. Há dois dias, enquanto regava a horta no fim da tarde desse início de inverno, pensando em nada, de estalo me veio a imagem da mulher vestida de noiva: JÁ SEI QUEM É!
Se o leitor teve paciência em me acompanhar até aqui, aqui começa a história. Antes de prosseguir, revelo a fotografia de Fabíola:




            No início dos anos 80 trabalhei no Hospital Universitário da cidade de ***, como  cirurgião, durante 6 meses, com o objetivo de organizar e credenciar a Residência Médica em Cirurgia Geral. Atendia em ambulatório uma vez por semana, à tarde. Foi quando conheci Fabíola.
            A paciente tinha em torno de 60 anos, era levemente obesa, e denotava intenso nervosismo no início da consulta.  
            – Doutor, sei que eu devia ter procurado um médico há muito tempo. Não procurei. A doença avançou muito, por isso não tenho cura. Mesmo assim, estou aqui, não sei bem por quê nem como.
            Fabíola falava aos solavancos, tamanho seu nervosismo. Em contraste com a agitação interior, me pareceu tratar-se de mulher forte, de personalidade marcante, que me olhava nos olhos enquanto falava. Aos poucos foi se acalmando, relatou-me o início da doença, um tumor na mama direita, duro e indolor.
            O exame físico foi assustador. O tumor era enorme, media 15 centímetros em seu maior diâmetro, pouco doloroso à palpação. No centro da lesão, uma úlcera infectada, a exalar mau cheiro.
            – É câncer, doutor?
            – Precisamos do exame histopatológico para confirmar o diagnóstico.
            – Tem cura, doutor?
            – Fabíola, antes de tudo precisamos remover esse tumor. Você já sofreu demais com ele e por muito tempo. Depois então conversamos sobre o diagnóstico e tudo o mais que você desejar saber. 
            Para minha surpresa a paciente não questionou a necessidade da operação, ela que relutou por tantos anos pela procura de ajuda. Disse apenas que confiava em mim.
            A retirada da mama foi operação extensa, traumática, porém razoavelmente bem tolerada pela paciente. Tratava-se de um certo tipo de tumor que, embora maligno, apresenta crescimento muito lento, ou seja, é clinicamente benigno, em linguagem mais técnica. Com a operação dita radical, a chance de longa sobrevida podia ser considerada. Todas as informações foram repassadas à paciente, na medida em que ela fazia as perguntas de seu interesse.
            Fabíola teve alta hospitalar, foi para casa, livre do estorvo que carregara por tantos anos. Parecia um milagre!
            Durante as consultas pós-operatórias tivemos oportunidade de nos conhecer melhor, eu a ela, ela a mim. A relação se estreitava a cada encontro, uma relação intensa e difícil de descrever. Por parte dela, uma gratidão infinita. Mas não era esse o único sentimento, havia admiração, quase idolatria pelo cirurgião que operara milagre, tudo sem o menor indício de pieguice; Fabíola preservava sua atitude de mulher independente, dona de si e de seus desejos. De minha parte, o prazer da companhia de uma mulher interessante, culta, vivida, bem mais velha do que eu, eu nos meus 30 e poucos anos; havia também o prazer de haver tomado atitude correta, o da cirurgia radical, criticada por alguns colegas; dei-lhe sobrevida, pensava eu. 
            Até que Fabíola me convidou para um chá, à tarde, na casa dela. Aceitei de pronto o convite. A conversa parecia que pairava em nuvens. Falávamos de tudo e de nada. Ríamos muito. A confiança mútua já se desenvolvera. Desfrutávamos de plena liberdade. Foi quando ela me presenteou com a fotografia, talvez o objeto mais valioso que encontrou para me presentear. Hoje sei, aquele foi um momento de felicidade porque havia amor.
            Depois de dois meses voltei a Brasília e perdi contato com Fabíola. Passado um ano, recebi certo telefonema.
            – É o doutor André?
            – Sim.
            – Aqui é Marilda, amiga de Fabíola. Sei que ela gostava muito do senhor, então estou ligando para dizer que ela morreu.
            – Como? Morreu como?
            – Estava parada esperando uma condução, foi atropelada por um ônibus. Morreu na hora. Desculpe a notícia, doutor, mas resolvi ligar porque ela gostava muito do senhor.
            Além de não reconhecer a pessoa da fotografia durante anos, esta história também permaneceu afastada de minha memória por longo período. 
            Por que, por que?                

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Moisés: mais 4!


Ninguém passa impune

Perguntado sobre o imenso prazer do convívio com seu próprio estado de arte, o músico respondeu:
– O dia tem muitas horas, meu caro.


Shy

Gostava de pensar que o medo e a timidez o protegeram, mas desconfiava do preço.


Rotina

A tragédia dele tornou-se evidente e cotidiana. Restava se acostumar aos olhares aterrorizados dos outros.


Na consulta

– Doutor, o meu avô é vaidoso demais. Ele quer fazer essa cirurgia só para tirar os óculos.
– Guria, eu não sou vaidoso. Eu sou é lindo. 



                                       Moisés Lobo Furtado

terça-feira, 23 de junho de 2020

Original forma de Arte



Grupo se apresenta para uma plateia formada por plantas,
criação do artista espanhol Eugenio Ampudia
Lluis Gene/AFP

A casa de ópera Liceu de Barcelona  (22 jun 2020) realizou concerto exclusivo para uma audiência incomum: suas quase 2.300 plantas.
Os organizadores disseram que a intenção foi refletir sobre o absurdo da condição humana na era do coronavírus, que priva as pessoas de sua posição de espectadores. A criação é do artista espanhol Eugenio Ampudia. (Luis Felipe Castilleja)

“A natureza avançou para ocupar os espaços que tomamos dela, disse Eugenio Ampudio. Podemos ampliar nossa empatia? Vamos começar com arte e música em um grande teatro convidando a natureza a entrar”.
Após o concerto as 2.292 plantas de estufa colocadas em cada assento seriam doadas a profissionais de saúde na linha de frente do combate ao vírus.
O quarteto de cordas interpretou "Chrysanthemum", do compositor italiano Giacomo Puccini. 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/casa-de-opera-reabre-na-espanha-com-concerto-para-publico-formado-de-plantas.shtml

segunda-feira, 22 de junho de 2020

4 microcontos sobre a Velhice


Aí sim...

Quando a Velhice chegou, conformou-se, era natural. Quando bateu a Tristeza, aí sim, ficou difícil viver.


Inverno

Com a chegada do inverno os velhos se agasalham, emudecidos, encorujados. A incerteza da primavera.


Descoberta

Certo dia o velho percebeu que aquilo que mais irritava seus interlocutores era a própria surdez dele.


Achado

Velho, aprendeu a escrever microcontos. Gostou. Eram curtos os prazos que a vida lhe oferecia.

sábado, 20 de junho de 2020

Paula, Fotógrafa do Ano






Extraordinário mesmo!

Concurso 35 Awards:
Paula ganha título de Fotógrafa do Ano!
Categoria Subaquática!
Entre os 100 melhores fotógrafos!

Parabéns querida Paula!



Moisés volta ao blog!


Aqui vão mais 4 microcontos de Moisés Lobo Furtado, um especialista. Para a honra deste blog.


Cirurgia delicada

O doutor, assustado, lê no jornal que a economia ficará em circulação extracorpórea durante a pandemia. 
 - Será que o coração volta a bater?


Lockdown

Antigas suspeitas afloraram na pandemia, nenhuma o torturou mais do que perceber a esposa não se perfumar.
  

Promessa

Quando passou no vestibular de medicina prometeu que seria feliz para sempre.


Pressa

Sai correndo com um pão entre os dentes, sobe no ônibus, coloca os fones no ouvido e busca o celular no bolso. As calças ficaram em casa.

Ontem, pequeno botão





                                               Ontem, pequeno botão;
                                    hoje flor, cheia de graça;
                                    amanhã, murcha, no chão.
                                    Tudo passa... tudo passa...

                       
                                                              Paulo S. Viana


Foto: AVianna, mai 2020

Condenação

Frase do dia


A analogia é com Al Capone. Não podemos afirmar que sua prisão por sonegação fiscal tenha sido injusta, mas não há dúvida de que teria sido mais didático se ele tivesse sido condenado por algum dos muitos assassinatos que ordenou.

Hélio Schwartsman



Dois irmãos constrangidos

Galeria de Família




A escola – o famoso Instituto de Educação “Conselheiro Rodrigues Alves” – tirou uma manhã para fotografar todos os alunos. Com certeza contratou fotógrafo profissional.
            Os alunos sentavam em frente a uma pequena mesa, pegavam da caneta, fingiam escrever alguma coisa num caderno aberto sobre a mesa, os olhos pregados na câmera, e ao fundo a Bandeira Nacional, salve salve o pendão da esperança!
            Paulo Sergio foi assim fotografado ainda no curso primário, penso eu, usando suspensórios, o cabelo bem cortado, a mão esquerda fechada a sugerir alguma tensão, e o olhar mais doce do mundo! 
            Em tempo, a escola era ótima, ensino de primeira, mas os alunos adoravam cantar o refrão: Instituto de Educação, entra burro e sai ladrão!
            



Custei a encontrar a minha foto tirada no mesmo dia – o pendant que faltava. Cursava o segundo ou terceiro ano do primário, hoje fundamental.
Arrumaram-me, ainda por cima, um paletó de brim que não era meu; a caneta e o caderno não eram meus; no linguajar de hoje, a foto é fake!
        Nunca gostei dessa foto, especialmente por causa daquele cabelinho à direita; hoje não vejo nada demais nele, mas quando criança, aquilo me despertava muita raiva. Quem penteou meu cabelo daquele jeito?


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Fartura


Elogiou tanto o primeiro vinho, mas tanto, que não lhe restaram adjetivos para o vinho principal.

sábado, 13 de junho de 2020

Luar

Fotominimalismo




Foto: AVianna, jun 2020
iPhone 11 Max Pro

Racismo

Frase do dia


"A verdade é que, gostemos ou não, somos prisioneiros de nossas épocas. Em qualquer período que vivamos, há sempre um horizonte de possibilidades morais além das quais é muito difícil enxergar."

                                     Helio Schwartsman





Oficina do Tobias XV - Epílogo

Folhetim


Décimo quinto encontro


Alguns dos senhores haverão de perguntar por que não chamei Conclusão ao nosso último encontro e preferi Em Resumo. Formulada a questão, torna-se óbvia a resposta. O processo de aprendizagem e o aperfeiçoamento da escrita não terminam nunca, não se concluem. 
            Recebi dos senhores 286 textos, e os devolvi todos com minhas observações; aqueles entregues hoje, os comentários serão enviados por e-mail. Em cada texto coloquei uma das seguintes letras: MB, B e P. Agora, ao final da oficina, revelo o significado delas: Muito Bom, Bom e Persevere. Releiam seus textos, por favor, com o apurado senso crítico que demonstraram durante nossos encontros. Espero ter sido útil em pequena porção que seja, mas não se iludam, será com esforço e tenacidade, a escrever diariamente, se possível, que os progressos virão.
            Façam isso com alegria! É preciso sentir prazer em escrever. E cuidem da forma. Lembrem-se, não há fôrma; não se prendam a regras, a padrões ou estilos pré-estabelecidos, exerçam a liberdade de criar, cuidando da forma.
            Portanto, em resumo, o que os senhores puderam aprender nesses 15 encontros?
            Ana Paula foi a primeira a se manifestar, Professor, desculpe, mas esperava mais da sua Oficina, esperava dicas, orientação, ideias, macetes, alertas, para melhorar a minha escrita. Tobias curto e grosso, Você escolheu a oficina errada, minha filha; digo mais, NINGUÉM ENSINA NADA PARA NINGUÉM, A PESSOA APRENDE! E o silêncio voltou à sala.
            Pois eu adorei, sapecou Suzete, alegrinha, convencida de que voltava para casa cheia de ideias.
            Eu só tenho a agradecer, acrescentou Tina, pela oportunidade de contar uma historinha; a idade me ensinou que, de fato, a responsabilidade de aprender é só minha.
            Josíres não poderia ser mais enfático: amei amei amei! Obrigado, Professor.
            Vejam os senhores como está arraigada na cabeça da gente este binômio Professor/Aluno, ou seja, AQUELE QUE SABE/AQUELE QUE NÃO SABE. Ao lhes dar total liberdade para escrever, sem entraves e estorvos, pretendi lhes oferecer a autoridade DE QUEM SABE.
            Agora é Clarice quem pede a palavra, Tobias, você podia sugerir algumas leituras que acha fundamentais para quem deseja escrever, Boa pergunta, menina, pois nela está implícita a ideia de que é preciso ler, antes de tudo. Sugiro que não passem um dia de suas vidas sem que não tenham um livro nas mãos. Sugiro ainda que alternem um clássico e um autor contemporâneo. Um clássico, porque é preciso ler os clássicos, e um contemporâneo, para que se familiarizem com a literatura de nosso tempo e para que novos autores possam vender seus livros e comprar comida. As risadas voltaram ao salão, que o clima era de muita severidade até então.
            Devo acrescentar uma última sugestão, completa Tobias, Leiam Machado de Assis, sempre, leiam e releiam, não apenas os romances mais afamados, leiam os contos, as crônicas, leiam tudo de Machado, para se entranharem na intimidade da língua portuguesa. Mas também não deixem de ler Grande Sertão: Veredas, do nosso querido Rosa, pois ali a intimidade com a língua será consumada.
            E chega de conselhos. Tornou-se hábito no último encontro de nossa oficina, que alguém, por um motivo ou por outro, tenha se destacado, não que seja o melhor, ou a melhor, nada disso, é apenas um mimo meu, que essa pessoa receba uma lembrança, certamente um livro. Nesse seleto grupo, escolhi Suzete, que leva de brinde o livro de poemas chamado Esmo, de autoria de Paulo Sergio Viana.


            Os estrondosos aplausos sugerem quase que a unanimidade em favor da escolhida. Digo quase, vocês sabem, Ana Paula...
Bom que terminamos, senhores, arremata Tobias, porque vem aí gravíssima pandemia, um novo vírus talvez surgido na China e que se espalhou pela Itália e certamente chegará por aqui. Havendo quarentena, aproveitem o tempo para ler e escrever. Felicidades a todos. Foi um enorme prazer conhecê-los. Ah!, o almoço hoje é por minha conta.
A oficina termina com ruidosa e prolongada salva de palmas. Uns poucos enxugam uma lágrima que ameaça cair.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Oficina do Tobias XIV

Folhetim


Décimo quarto encontro


No décimo quarto encontro, com tema livre, o grupo se divide entre os que escrevem à larga, sem peias, gostando do vento batendo no rosto como numa veloz cavalgada, e aqueles que diante da folha em branco ou da tela vazia, empacam, tamanha dificuldade diante da partida. 
            Aí está a razão pela qual Tobias escolhe o tema livre. Professor, não sei por onde começar, afirma Beatriz; ela é jornalista e necessita de um mote, um fato jornalístico, para começar, não sabe escrever ficção. O mesmo acontece com Solange, dona de casa, sempre muito atarefada, mas quando senta para escrever, As ideias somem, Professor! Tina não sofre desse mal, Tenho muitas histórias para contar, aqui vai uma delas:

Cruzava uma ponte sobre um ribeirão do qual já não me lembro o nome quando vi um menino pequeno dentro daquela água fétida, em plena enchente, tentando recuperar uma bola de futebol. Outras pessoas já se aglomeravam sobre a ponte, gritando para que o menino saísse da água. Reconheci-o! Chamava-se André, filho de Ondina, minha amiga que morava na casa ao lado. Corri até lá, gritei pela mãe, para que ela com sua autoridade obrigasse o menino a sair da água. Esbaforidas, corremos as duas para a ponte, mas André já estava na margem, agarrado a sua bola. 
– Vai para o castigo, menino, bradou-lhe a mãe. 
– Vou, mas com minha bola na mão!

            Choveram aplausos, Tina, você precisa escrever um livro, disse Suzete, conte mais histórias deliciosas como esta! 
Tobias, de onde veem essas ideias estranhas que os escritores colocam em livros e mais livros, pergunta Tomás, timidamente; de onde veio aquele microconto do Kafka, onde as crianças se trancam dentro de uma mala e morrem sufocadas? Esta é uma pergunta interessante, de onde veem as ideias, e ninguém menos do que Freud procurou respondê-la, disse Tobias. Veem do inconsciente, segundo o mestre. A bela história que nos contou Tina vem das experiências pessoais dela, guardadas na memória. Nossas experiências de infância são sempre muito ricas, e acabam esquecidas porque não as escrevemos. Qualquer ideia serve, desde que a forma seja de qualidade – não canso de repetir isso. Oficina serve para tratar da forma.

Ela conviveu conosco nos últimos 15 anos. Era da família, gente como a gente. Chamava-se Flor. Era da raça shih-tsu, branca com manchas marrons, o rabinho peludo, sempre alegre e meiga a abanar o rabinho. Mas envelheceu, a catarata avançada, acabou ceguinha de tudo, sofria com a artrose mas ainda andava pela casa sem se perder. Agora vem o mais interessante da história, Flor perdeu o apetite completamente, daí o emagrecimento progressivo, sem força nem para andar, a prostração doentia. Até que descobrimos o único alimento que Flor aceitava com gosto, comia com prazer e lambia os beiços e pedia mais: caqui. Flor era louca por caqui, comia caixas e mais caixas de caqui, e ainda viveu entre nós alguns anos comendo caqui! Acabou morrendo de velhinha. Nós, que ficamos, toda vez que comemos caqui nos lembramos de Flor. Ela ainda está entre nós.

Tudo serve para a escrita, continuou Tobias, mas a forma é essencial. Apresento-lhes pequeno trecho das Memória póstumas de Brás Cubas, cuja mãe acabara de falecer. Escreve Machado, na voz de Brás Cubas:

“A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem nunca.”

            Vejam os senhores, em pleno sofrimento da perda materna, Brás Cubas nos fulmina com a mais fina ironia: os ossos não emagrecem nunca! Que ousadia! Que humor fino! Que imagem para se guardar para sempre: os ossos não emagrecem nunca! Frase como esta vale um milhão. Procurem essas frases – elas estão por aí –, ousem, não tenham medo do ridículo, corram riscos, saiam do ramerrão papai-mamãe, liberdade liberdade liberdade de pensamentos e ideias.
            Via-se, Tobias empolgara-se! O grupo percebe o entusiasmo nas palavras dele, e isso é contagiante. Aplaudem calorosamente.
            Suzete ainda relata interessante episódio ocorrido em seu salão de beleza, em que um homem morrera exsanguinado por uma tesourada na virilha, a artéria femoral seccionada. Ela faz daquilo um conto policial.
            Senhores – é sempre com essa palavra mais ou menos solene que Tobias encerra os trabalhos do dia –, amanhã teremos nosso último encontro. O tema será: EM RESUMO.
            Tenham uma boa tarde.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Oficina do Tobias XIII

Folhetim


Décimo terceiro encontro


Tobias, ao iniciar o encontro, afirma, Esta oficina não pretende formar poetas, porque a Poesia é um dom, mas quem sabe alguns de vocês têm o dom e podem desenvolvê-lo; no entanto, ler poesia todos podemos e devemos fazer, se possível todos os dias.  Distribui impressos quatro poemas, e os lê para o grupo.

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor.

                        ***
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

                        ***
No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

                        ***
Metade

construí minha casa pela metade
paredes de metro e meio
as portas sem fechadura
escadas sem corrimão
a mesa não tem cadeiras
o prato não tem talher
há no quintal meia horta
e meia lua no céu
nessa casa de meeiro
habita pela metade
metade do meu desejo
as minhas meias palavras
só permanece o meu sonho
inteiro inteiro inteiro 

            Sem anunciar o nome dos poetas, convida Tobias, Agora vamos conversar sobre eles.
            Gosto mais desse, gosto mais daquele, palpites se sucedem, bem pobrinhos, sem profundidade, como se nada ou muito pouco tivessem assimilado. O primeiro poema, 5 alunos conhecem o autor; o segundo, 2 alunos; o terceiro já visitara a oficina, trazido por Clarice no segundo encontro; e o último, apenas Suzete identifica o poeta, aliás ela conhece todos eles. Tobias pede que falem sobre as diferenças de estilo. Nem todos sabem o que é um soneto, nem como é construído. Ana Paula arrisca uma pergunta, Professor, pode escrever assim sem nenhuma pontuação, como no último poema? Para falar a verdade, eles não sabem nada sobre Poesia. Tobias, experiente, não esperava outra coisa.
            Pelo menos vocês gostaram de ouvir os poemas, pergunta Tobias levemente alterado, procurando esconder a irritação. A resposta positiva é unânime. Então comprem livros de poesia, de preferência os mais finos, de poucas páginas, fáceis de carregar, e leiam poesia todos os dias, leiam em voz alta, um poema ao dia que seja, homeopaticamente, pois faz bem à saúde, ao corpo, ao bestunto e principalmente à alma.  
            Tudo pode em poesia, Ana Paula, é a forma de escrita mais livre que há. Mas tomem cuidado, já dizia Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor”. Não é tão somente de beleza que se trata, como no primeiro verso de Luís Vaz de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver”. A pedra de Drummond definitivamente não é um paralelepípedo. (Alguns sentem que Tobias está meio puto da vida com tanta ignorância.) Quando o poeta Paulo Viana fala da metade das coisas, ele quer mesmo falar do sonho inteiro. 
            Repito, escrever poesia é para poucos, ler poesia é para todos. Leiam leiam leiam poesia, é o que posso lhes dizer, senhores.
            Amanhã será nosso penúltimo encontro: o tema é livre. Escrevam. 
            Tenham uma boa tarde.
            

terça-feira, 9 de junho de 2020

Oficina do Tobias XII

Folhetim


Décimo segundo encontro


Ricardo, o engenheiro químico que até agora tem participação apagada, inicia o encontro:

Em primeiro lugar, deveríamos perguntar o que é um palavrão. Quem decide o que é ou não é um palavrão? O que será palavrão para um, não será para outro. A definição de taboo word (palavrão, na língua inglesa) no Oxford Advanced Learner’s Dictionary é “a palavra que muitas pessoas consideram ofensiva ou chocante, por exemplo, porque se refere ao sexo, corpo ou raça”.
            Isso sem falar nas mudanças que o significado obsceno das palavras sofre com o passar do tempo. Que diabo! Diabo há alguns séculos era palavra impronunciável. Hoje, nem palavrão é.
Os pesquisadores descobriram que o palavrão nasce em um mundo à parte dentro do cérebro. A linguagem comum fica a cargo da parte mais sofisticada denominada neocórtex; já os palavrões ficam no subterrâneo, no chamado sistema límbico. É também a parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva; nosso neocórtex é mais desenvolvido do que o dos demais mamíferos, mas o sistema límbico é bem parecido. Lá reside nossa parte animal, que sai da jaula de vez em quando na forma de palavrões. 
            Essas informações científicas explicam porquê falamos palavrões. De vez em quando eles saem... Porém, escrever um palavrão é outra coisa. Quem escreve pensa, e as palavras não saem, são registradas letra por letra. A responsabilidade de quem escreve portanto é maior, exatamente porque tem tempo para pensar. Isso não que dizer que não possamos escrever um palavrão. Podemos, porém com mais parcimônia do que o dizemos.
            Lembro-me de um texto de José Saramago, nosso Nobel de Literatura, em que ele vinha mostrando toda sua indignação para com uma determinada posição política, num crescendo de raiva, até que subitamente escreve um palavrão, e causa grande impacto no leitor! Portanto, colegas, o problema reside em que momento do texto lançar mão do palavrão. 
            Obrigado pela paciência, termina Ricardo.

            Aplaudidíssimo, merecidamente. E o que vocês acharam da carta lida ontem por João, pergunta Tobias. Clarice logo responde que não gostou. Bem, Professor, ele conseguiu o empréstimo, acrescenta Suzete, para risada geral; com os palavrões parece que João conseguiu dar credibilidade ao seu estado de penúria, com intenso realismo; a grosseria exposta na carta tinha essa finalidade, e comoveu o amigo; eu gostei, conclui a cabeleireira. 
            Tina, a senhora de Guaratinguetá, observa, Conheço bem o escritor e poeta Paulo Viana, que já teve uma bela crônica lida aqui; ele diz com toda a ênfase que “Machado de Assis nunca escreveu um palavrão”, o que penso ser um baita argumento. Thiago contra-ataca, Era um outro tempo, Tina. 
            Sucedem-se as opiniões, uns pró, outros contra. Clara, que pouco tinha falado até agora, cita Marcelo Mirisola, que ganhou notoriedade abusando do uso de palavrões, mas infelizmente nem Tobias havia lido qualquer coisa de Mirisola. Puta que pariu, vocês precisam ler mais, dispara Clara! E, sob gargalhadas, todos concordam que o palavrão agora está bem empregado.
            Tobias resolve dar uma aula, contrariando seus princípios:

O folclorista pernambucano Mário Souto Maior (1920-2001) decidiu percorrer várias regiões do país em busca dos palavrões e o resultado pode ser encontrado na nova edição de "Dicionário do Palavrão e Termos Afins". E mostra o livro!


O dicionário foi publicado originalmente em 1974, com prefácio de Gilberto Freyre, e sofreu censura dos militares. Foi relançado nos anos 80, e a primeira edição esgotou rapidamente. Carlos Drummond de Andrade defendeu o glossário publicamente:
"A carga de tais preconceitos é tamanha que o "Dicionário do Palavrão e Termos Afins", de Souto Maior, levou anos trancado em gavetas de censura, porque certo ministro da Justiça considerava atentatória aos costumes uma obra que tem similares de nível universitário na Alemanha, na França e outros países. Foi necessário que a opinião pública forçasse os governos militares à abertura democrática, embora tímida mas já hoje irrecusável, para que esse livro conquistasse direito de circulação e, portanto, de ser criticado. Seu autor, julgado sumariamente em sigilo de gabinete, seria assim um pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação."

            Se tem até dicionário, o palavrão merece nossa consideração, penso eu, e estou em boa companhia, arrematou Tobias.
            Senhores, para amanhã conversaremos sobre Poesia! Tenham uma boa tarde.