segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ferreira Gullar e as bananas


Tenho profunda admiração pelo poeta Ferreira Gullar, gosto muito de seus textos sobre crítica da arte, porém confesso minha dificuldade para com o cronista Ferreira Gullar. Em minha despretensiosa opinião, a maioria das suas crônicas é vazia, maçante, insossa, e quando as leio, custo chegar ao fim, quando chego. De resto, ninguém precisa ser bom em tudo...
Até que neste último domingo ele publica Alquimia na quitanda! (1) Um primor, uma delícia de texto, que tem início de forma surpreendente:

“ ...as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam na quitanda de meu pai. Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o "Poema Sujo". Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos 30 anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas varejeiras, zunindo. Haverá coisa mais banal que bananas apodrecendo dentro de um cesto?”

Fui então ao Poema sujo (em Toda Poesia, 9a edição, José Olympio Ed., 2000), e o grande prazer ao relê-lo:

...
“uma banana
não apodrece do mesmo modo
que muitas bananas
dentro de
uma tina
            – no quarto de um sobrado
            na Rua das Hortas, a mãe
            passando roupa a ferro –
fazendo vinagre
            – enquanto o bonde Gonçalves Dias
            descia a Rua Rio Branco
            rumo à Praça dos remédios e outros
            bondes desciam a Rua da Paz
            rumo à Praça João Lisboa
            e ainda outros rumavam
            na direção da Fabril, Apeadouro,
            Jordoa
            (esse era o bonde do Anil
            que nos levava
            para o banho no rio Azul)
e as bananas
fermentando
trabalhando para o dono – como disse Marx –
ao longo das horas mas num ritmo
diferente (muito mais
            grosso) que o do relógio
fazendo vinagre”
...
            E por aí vai o longo poema.
            O Ferreira Gullar cronista continua:

“Entenderam agora por que costumo dizer que a arte não revela a realidade e, sim, a inventa? Veja bem, não é que a banana real não tenha ela mesma seu mistério, sua insondável significação. Tem, mas, embora tendo, não nos basta, porque nós, seres humanos, queremos sempre mais. Ou seria esse um modo de escapar da realidade inexplicável? Se pensamos bem, a banana inventada pertence ao mundo humano, é mais nós do que a banana real. E não só isso: a realidade mesma é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa irreparável insatisfação com o real.”
           
Somos, pois, feitos de memória! Mas não somente da memória de fatos e sentimentos reais; somos feitos das memórias que inventamos para nós mesmos, ao longo de nossas vidas. Passamos a acreditar nelas, porque de fato, são tão ou mais verdadeiras que as reais.