Minha querida Suzete,
há mais de mês que não recebo cartinha sua e não posso reclamar, minhas respostas tardam, falta-me assunto, aparvalhado que me encontro com a enlouquecida política nacional, desanimado com nossos políticos, descrente do futuro de um país que se ainda não é uma Venezuela, já se parece muito com a decadente Argentina.
Escrevo com esforço, portanto não espere grande coisa desse meu texto, apenas a manifestação de saudade de você e vontade de saber notícias suas. (Você merecia coisa melhor, depois de sua última cartinha contendo a brilhante crítica a um certo microconto.)
Salva-me a música e a literatura. Pois escrevo para lhe recomendar um belo livro, O verão tardio, de Luiz Ruffato (Companhia das Letras, 2019). O autor já ganhou fama nacional, com diversos livros publicados, entre eles o divertido Estive em Lisboa e me lembrei de você, e o monumental Inferno provisório!
O verão tardioconta a experiência vivida pelo protagonista durante seis dias, de terça-feira a domingo, em seu retorno a Cataguases – sempre Cataguases – 20 anos depois de ter deixado a cidade natal. Porém, o que me cativou mesmo no livro foi a forma, o fluxo de consciência a prender a atenção do leitor, desde as banalidades do cotidiano até a marcante posição política de Ruffato, um escritor de oposição, crítico da política do governo atual.
Eis uma pequena amostra, Suzete, para ver se você se anima a ler o livro:
“[ ]
acordo com o barulho do portão de ferro – abrindo ou fechando? Fechando! Passei por uma madorna. Deve ter sido a Rosana saindo para o trabalho. Os passarinhos em algazarra. Barulho de carros lá fora. Ponho os óculos. Levanto. Minha cabeça dói. Vou até o mancebo, recolho a calça e a camisa, visto. Sento na cama, boto as meias, calço o tênis. Pego a escova de dentes na mochila. Colo os ouvidos à porta, nenhum movimento. Atravesso o corredor, penetro no banheiro, tranco a porta. Urino. Lavo o rosto, escovo os dentes. Dou descarga. Deixo o banheiro, entro rapidamente no quarto, guardo a escova na mochila. Coloco o boné na cabeça. Tomo fôlego, alcanço sorrateiro a cozinha, consulto o relógio de carrilhão, mas ele não marca a hora certa, alcanço a garagem, contorno o Honda Fit, puxo a porta lateral, ganho a rua. E então aspiro com força o ar quente da manhã ensolarada.”
Não que eu seja fã da escrita de frases curtas, que a gente lê como se estivesse soluçando. Mas o ritmo alucinante de Ruffato é diferente, penso eu.
Espero que compre o livro e goste, Suzete. A capa é bem bonita, veja.
(O inusitado de se escrever uma carta pela Internet, seja enviada por e-mail, postada no blog ou por qualquer outra via virtual, é que podemos acrescentar imagens, como a capa do livro em questão. Não é fantástico isso, Suzete?)
Ainda a respeito da escrita do Ruffato, encontrei em Manoel de Barros (Poesia Completa, Leya, 2010), uma frase que bem se aplica:
“A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.”
Ruffato desarruma a linguagem!
Fico por aqui, com forte abraço e um beijo à amiga.
Do sempre seu,
andré