quinta-feira, 29 de março de 2012

Haicai da Lola

depois da chuva
poça na rua
Lola lambe a lua

Darwiniana

o que podemos aprender
com nossos cães
- nossas origens

Teologia animal



questão de fé
sou devoto
de meus cães

Fidelidade

à beira da piscina
meus cães, ao sol,
esperam por você

Mérilin


          Eu me chamo Mérilin. Nem é preciso dizer que se trata de homenagem àquela loura americana que deu para o presidente lá deles, os gringos, linda-linda-linda-de-morrer mas meio gordinha - quer dizer, gostosa para a época, gordinha para os dias de hoje, tempo de magricelas -, aquela que morreu de overdose, dizem, mas que continua viva como o Elvis que também não morreu, livros e livros e mais livros e fotografias e fotografias e mais fotografias sobre a vida dela, que o povo adora mesmo é fofoca, pois é, por causa dela minha mãe, fanática por cinema, botou esse nome em mim que, aliás, eu adoro!
         Na escola eu era vítima: Méééééérilin méééééérilin méééééérilin, os meninos repetiam imitando o berro de cabrito ou de cabra, sei lá, mas eu não estava nem aí, sabia que era purinho despeito, inveja mortal, porque eles se chamavam Zé, João, Pedro, Pinto, Sousa, Silva, já se viu algum artista com um nome desses? Só se for o Zé do Caixão!
         Mas tem uma coisa que não gosto: que as pessoas pensem que sou uma debiloide, uma retardada, uma lesa-pancada-miolo-mole, só porque a minha xará era loura e um pouco ingênua, talvez. Não preciso dizer que sou louca por cinema e que vi todos os filmes dela e  achei ela meio bobinha mesmo. Ou os papéis que davam pra ela. Ela sempre com aquele ar-de-quem-não-sabe-de-nada.
         Burra eu não sou. Tenho até um blog! Meu amigo Gui, um craque nesse negócio de blog, foi quem escolheu o nome, que eu aprovei sem pensar:
merilinpontocom.com.br
e estou pensando em ganhar algum dinheiro com ele, só preciso de patrocinadores, o que não vai ser difícil por causa do nome do blog e do meu próprio nome, é claro. O que escrevo no blog? Ora, escrevo sobre cinema, posso dizer que é minha especialidade, herdei o dom de minha mãe, e o meu nome deu um upgreide nessa habilidade. Também ajuda - ajuda? - o fato de que sou muito romântica, como minha mãe gosta de dizer, Mérilin, você é muito sentimental...
Escrevo também sobre televisão. Ontem vi na tv uma propaganda que mexeu comigo. Não me perguntem o que eles queriam vender porque quando a propaganda é muito boa a gente nem presta atenção no produto, só sente e guarda na memória aquilo que mexe com a gente. A noiva perde o buquê no momento de ir para a igreja. O buquê sumiu, O buquê sumiu, O buquê sumiu, ela grita desesperada. Afobadíssima, vai com a mãe a uma florista, que imediatamente se dispõe a preparar um lindo ramalhete de rosas brancas em botão. Foi aí que me emocionei: gostei de pronto da florista, mulher madura, calma, dona-de-si nos seus esplêndidos quarenta anos, e que fala ramalhete em vez de buquê. Sinto vontade de chorar ao ouvir a palavra ramalhete. Buquê não me diz nada, coisa de francês besta, pernóstico, pedante, que fala bouquet fazendo biquinho... Na minha terra se fala ramalhete. Não é lindo? Como o meu nome...

A imagem e as palavras

         Do livro Paulo e Beatriz

     Em visita à exposição recém aberta ao público, Beatriz estacou diante da grande tela colorida, alegre, cheia de vida, vibrante mesmo, flores, flores de todas as formas e tamanhos, muitas flores num verdadeiro jardim em vermelho e azul, denso jardim, e depois de contemplá-la extasiada por longo tempo buscou instintivamente na pequena nota ao lado o nome do artista: uma mulher: Beatriz Milhazes. Em seguida leu o título do quadro: Estive Feliz De Saber Que Você Está Bem.
Beatriz esqueceu a imagem e foi arrebatada pelas palavras.
Isso mais parece título de romance!, pensou. E ao pensar, bambearam-lhe as pernas, sobreveio a vertigem, empalideceu, o coração disparado saindo pela boca, a respiração ofegante, a vontade incontida de chorar. Chorou. Precisou de sentar-se, respirou fundo para volver a pensar. O que está acontecendo comigo? Por que meu corpo reage assim tão violentamente antes que meus próprios pensamentos possam vir à tona aclarados? De onde vem este bruto sentir em estado puro? Não foi a pintura que me desmontou, foi esta maldita frase, eu sei. Sei também que gosto ainda mais das palavras que das imagens. Foi sempre assim, antes mesmo de conhecer Clarice Lispector e seu coração selvagem. Agora, acho que é meu coração selvagem que grita!
Beatriz respirou fundo mais uma vez, levantou-se, desta feita nem olhou para o quadro, voltou a ler a frase que a desconcertara. Quem passasse diante daquela cena naquele preciso momento veria uma bela mulher de aproximadamente 50 anos, mais alta do que baixa, os cabelos cortados curtos a ressaltarem o longo pescoço à Modigliani, bem conservada de corpo, elegantemente vestida com simplicidade, parada diante da pequena nota ao lado que continha as especificações do quadro. Se você, prezado leitor, fosse também um visitante daquela exposição, se bom observador fosse e não estivesse com pressa, talvez antes mesmo de olhar para o quadro pudesse ver que a mulher se quedava imóvel, o olhar perdido, o rosto molhado de lágrimas, um leve tremor nos lábios, transbordando emoções de antigas lembranças em profundo silêncio. Ela estava só.
Para Beatriz, o nome dado ao quadro falava de uma história de amor - da sua história de amor. Tempo houve em que ela amou desesperadamente o seu homem; separaram-se, mas ela nunca deixou de amá-lo. Reencontraram-se fortuitamente num aeroporto de Paris, almoçaram juntos, puderam conversar; ela soube que ele estava bem, havia feito um bom casamento, constituíra família, tinha três filhos. Ela, por sua vez, pouco falou de sua própria intimidade. Despediram-se.
Ao voltar para casa, Beatriz percebeu que num determinado momento, em um país distante, ela esteve feliz de saber que ele estava bem. O que ela não pôde disfarçar, foi a sombra de tristeza e melancolia a toldar-lhe a alma diante de tais pensamentos.
Hoje, ao ver aquela pintura tão alegre, plena de vida, e ler seu título desconcertante - ah!, a força das palavras! -, a mesma sombra... O que podia ter sido e que não foi. Ao sair da exposição, Beatriz encontrou o céu azul, o sol brilhante, o ar fresco e perfumado da manhã de fim de primavera, a vida presente.

Acidente


Na manhã ensolarada de domingo de fim de primavera o homem folheia o jornal despreocupadamente em companhia de seus cães. Depara-se então com a notícia da morte do amigo em trágico acidente de automóvel ocorrido na véspera numa conhecida rodovia federal.

Ocorre-lhe então que
: não se viam havia alguns anos;
: a amizade entre eles tinha esfriado em decorrência de um desentendimento banal;
: agora nada mais pode ser feito a esse respeito.

Ele pensa sobre
: o significado da amizade;
: a ocorrência dos desentendimentos banais;
: o que ainda pode ser feito a esse respeito.

Um leve e quase imperceptível tremor percorre-lhe o corpo, após o que prossegue na leitura do jornal. Os cães permanecem todo o tempo em silêncio.

Um crime hediondo em Praga


Quando ligou o computador naquela manhã de segunda-feira, precisamente às 6h e 30min, como era seu costume, pronto para retomar com a disciplina de sempre a escrita do romance policial que acabara de atingir a incrível marca de 400 páginas, percebeu que os 53 arquivos referentes a cada capítulo do livro haviam desaparecido. Na pasta dedicada ao romance restava apenas um único arquivo, enorme, pesado, com mais de 600 KB, cujo nome pareceu-lhe uma boa sugestão para o título do novo livro: Um crime hediondo em Praga.
         Alarmou-se, mas à primeira vista o material estava salvo, apenas disposto em um único longo documento de 400 páginas, contendo todos os capítulos na perfeita ordem em que foram escritos, incluindo seus respectivos títulos.  A formatação do texto e a correção ortográfica estavam perfeitas.
         Ao ler de forma aleatória algumas páginas, Pedro Paulo de Alcântara e Soler, o autor, foi tomado de grande surpresa: percebeu estarrecido, horrorizado mesmo, que a trama original havia mudado completamente
: Marcelo desistiu de seu amor por Regina e apaixonou-se por Letícia, a cunhada 10 anos mais jovem;
: Fernanda finalmente se divorciou de Pedro e mudou-se para a casa de Roberto, o pintor realista que acabara de conhecer no último fim de semana;
: o adultério de Sofia foi descoberto e tornado público, para espanto e gozo da alta sociedade;
: André, até então personagem chave no desenrolar do romance,  investigador de polícia aplicadíssimo, porém desacreditado no próprio Departamento de Homicídios por sua reconhecida condição de homem sentimental demais, morreu subitamente em decorrência de infarto fulminante, não se sabe se por desgosto ou ódio, ou as duas coisas; ou teria sido suicídio?;
: Carmem, de vítima passou à suspeita numero 1, porém a motivação do crime hediondo ainda não estava clara, ao menos nessas primeiras 400 páginas;
: no último capítulo escrito até então surgiu novo e enigmático personagem, completamente desconhecido do autor, um renomado psicanalista de Praga, homem de meia idade e bastante atraente - um sedutor -, e que poderia muito bem vir a ser o criminoso, a depender de como a história se desenrolasse, naturalmente.
         Diante de tantas e tamanhas reviravoltas na trama original, todas elas ocorridas à revelia do autor, este decidiu publicar seu romance assim mesmo, improvável, imprevisto, inacabado, inspirado no mais ilustre escritor de Praga  - Kafka -,  por quem nutria verdadeira veneração.
         O romance de autoria de Pedro Paulo de Alcântara e Soler revelou-se um retumbante fiasco de público e crítica.

O assentador de pedras


         O esplendor da paisagem impede que o caminhante que percorre em parte ou toda a extensão da calçada da praia de Copacabana dirija sua mirada para aquele homem magro de pele queimada que trabalha agachado a olhar para o chão: o assentador de pedras portuguesas. Funcionário público, a Prefeitura lhe paga o salário e ele honra o dinheiro que recebe: despercebido, trabalha de-sol-a-sol-mesmo-em-dia-de-chuva, começa pela Pedra do Leme, termina no Forte de Copacabana, termina não, pois lá chegando toma em seguida o sentido contrário, em direção ao Leme, na mesma calçada, agachado, olhando sempre para o chão, assentando aquelas pedras que já se deslocaram pelo uso.
         O movimento nessa calçada é pesado e ininterrupto. De dia ou de noite caminham nativos, turistas, gringos, punguistas, namorados, crianças e suas babás, jovens e velhos que apenas passeiam ou correm para manter a forma, a maioria em trajes de banho calçando tênis ou havaianas, mas em certas ocasiões pode-se ver também algum executivo de paletó e gravata, um médico, um advogado, sem contar as carrocinhas de pipoca, milho cozido, sorvete, empada, sucos, cerveja, refrigerantes, água mineral, água de coco, sanduíches, roupas novas e usadas, biquínis, saídas de praia, bonés e chapéus, toalhas exibindo paisagens cariocas, redes, tapetes, brincos, colares e pulseiras confeccionados com os mais diversos materiais, enfim, toda a sorte de badulaques e quinquilharias a serem vendidos na praia pelos ambulantes, de modo que, com o contínuo pisar as pequenas pedras se deslocam e se soltam, e basta que uma delas se mova para que se quebre o compacto preenchimento do piso e em seguida várias delas perdem seu lugar no pavimento, formando rapidamente uma grosseira falha que se expande assustadoramente qual urticária monstruosa, a exigir pronta reparação por parte do diligente assentador de pedras.
         O homem não vê aqueles que por ele passam. Ele pode sentir o movimento intenso das gentes, pode ouvir o burburinho das vozes, até algum fragmento de conversa mais indiscreta ele pode registrar, sente o cheiro de suor dos transeuntes pois quase sempre faz calor, verão o ano todo, mas ele não desvia o olhar do chão, que o assentamento das pedras requer toda sua atenção e cuidado. São de duas cores as pedras portuguesas, brancas e pretas, e compõem na calçada da praia de Copacabana as famosas ondas, pretas e brancas, a sugerir o movimento das águas do mar. Se uma delas, por distração, é colocada em posição incorreta, quebra-se a harmonia das ondas, e isso o assentador não pode permitir. Em seu vai-e-vem cotidiano, num sentido ou noutro, encurvado de tanto olhar para o chão, às vezes ele se depara com uma peça assentada de maneira incorreta, pedra preta no branco ou pedra branca no preto, e justifica o fato para si próprio como sendo efeito do sol inclemente do meio-dia, a turvar-lhe as vistas, ofuscar as cores, embaralhar as pedras, ferver os miolos, induzir o erro. Agacha-se então, remove a pedra intrusiva, repara seu engano colocando no local aquela da cor adequada, e segue em busca das pedras soltas.
         Aos domingos, o assentador de pedras leva a família para passear na calçada de Copacabana e, orgulhoso, mostra aos filhos sua arte. Mas não deixa de registrar na memória os trechos em que já há pedras soltas, a exigir no dia seguinte o seu despercebido incansável trabalho.

Conveniência


Com o limoeiro carregado, não lhe restou outro remédio senão aumentar o estoque de cachaça.