Justino Bretas vendeu tudo que tinha, a bela casa em que morava com a família na cidade grande, carro do ano, um terreno em Araruama, a bicicleta de corrida que lhe custou uma fortuna, móveis, três televisões, máquina fotográfica semiprofissional, trocou os dólares que havia juntado ao longo dos últimos dez anos, e comprou um terreno de frente para o mar na Bahia. Lá construiu uma pousada.
Era sonho antigo, morar na praia e administrar uma hospedaria que tratasse bem dos clientes e servisse a melhor comida baiana. Pois a Pousada Sol Encantado logo se tornou conhecida na região, com a reputação de que era a mais bonita, a que oferecia melhor hospitalidade e que dispunha de excelente gastronomia. O negócio prosperava, tocado por toda a família, o próprio Justino, ex-funcionário do Banco do Brasil, sua mulher Maria Clara, ex-professora primária, Álvaro, formado em administração, e Clarinha, adolescente quase adulta, uma linda menina de olhos verdes e cabelo cacheado.
Justino cuidava da portaria, entrada e saída dos hóspedes, reservas e disponibilidade de acomodações, cobrança das diárias; Maria Clara tomava conta da casa, dos empregados, da cozinha, da limpeza sempre impecável; Álvaro possuía espírito de empresário e como tal manejava bem as finanças; Clarinha, menina mimada, apenas enfeitava a Pousada Sol Encantado. Digamos que viviam bem, sobrava algum ao final do mês, não era lucro milionário, porém o prazer do trabalho bem sucedido e da ótima reputação que gozavam, para eles era o que bastava.
Até que Justino recebe e-mail da Itália, de um tal Ruffino Giancarlo Malldonado, referindo-se a si mesmo como chef de cozinha de reconhecida fama, especialista em gastronomia internacional, com experiência até mesmo em restaurante duas estrelas do Guia Michelin. O italiano propunha uma temporada na Pousada, com casa-comida-roupa-lavada-módico-salário, além de verdadeira revolução no cardápio do Sol Encantado.
Nem é preciso dizer que a proposta subiu à cabeça do romântico proprietário. Um chef italiano, aquilo ia se espalhar pela Bahia e arredores – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Vitória –, o Sol Encantado referência da gastronomia mundial, os europeus iam chegar aos bandos estridentes, não demoraria muito e os chineses chegariam em ônibus superlotados de pessoas baixinhas com a mesma cara, uma máquina fotográfica e muito dinheiro no bolso, viriam também os japoneses com as mesmas caras, suas máquinas fotográficas e um pouco menos dinheiro no bolso, Álvaro você precisa atualizar a administração da Pousada, penso que devemos cobrar em dólares ou em euros, preste atenção no câmbio pelo amor de Deus, Maria Clara contrate mais ajudantes de cozinha, que nenhum chef pega no batente, chef apenas comanda...
(PAUSA. Eu cá comigo: essa história de não pegar no batente e apenas comandar, me faz lembrar de um ditado que aprendi na Academia: Quem Sabe Faz, Quem Não Sabe Ensina...)
Voltemos ao delírio de Justino: Clarinha você precisa cortar o cabelo e comprar vestidos novos, nada de minissaias e decotes, comporte-se, fique de olho nos italianos com cara de artistas de cinema e cheios de más intenções, ai meu São Sebastião, me ajude!
Aquilo já havia se transformado em pânico na cabeça de Justino, o que não o impediu de responder afirmativamente à proposta do italiano, que em quatro dias estava batendo à porta da Pousada. (Justino bem que estranhou aquela presteza.)
Ruffino Giancarlo Malldonado era um homem bonito! Lindo de morrer, exclamou Clarinha! Belissimo, afirmou Maria Clara, imitando sotaque italiano, Belissimo! Moreno, porte atlético, cabelos negros, olhos verdes, e um nariz verdadeiramente italiano, um artista de cinema. Muito bem vestido, o terno bem cortado, camisa aberta no peito mostrando o medalhão de ouro, o homem apresentou apenas seu passaporte, alegando que sua fama dispensava quaisquer credenciais. Introduzido à cozinha da pousada – as lindas baianas babando diante de tamanha formosura – Ruffino falou de seus planos, da reformulação do cardápio, das receitas de massas italianas, das sobremesas, tudo num português arrevesado de impossível compreensão, o olho grande posto nas baianas e em Clarinha. Maria Clara, chefe da cozinha até então, foi tomada pelo ciúme. Justino permanecia encantado. Clarinha já apaixonada.
A notícia espalhou-se pelas redes sociais e pelo boca-a-boca baiano de norte a sul do estado e redondezas. As acomodações da pousada foram ocupadas completamente, reservas apenas para daqui a seis meses. Justino Bretas rindo à toa.
No almoço era servida comida típica local, moqueca de peixe, de camarão, de siri mole e moqueca mista, peixe assado e frito, camarão ao alho e óleo, carne de sol com macaxeira, pasteizinhos de siri, tudo preparado pelas baianas, delícia de comida. À noite, o jantar era comandado por Ruffino. As saladas servidas como entrada tinham bom aspecto, verduras e legumes frescos, pouco sal, um fio de azeite. Já as massas deixavam a desejar, principalmente porque mais pareciam variações sobre o mesmo tema: espaguete à carbonara, espaguete à putanesca, espaguete à matriciana, espaguete ao sugo, espaguete ao alho e óleo, espaguete a Alfredo, espaguete ao vôngole, espaguete aos frutos do mar, espaguete à bolonhesa, espaguete aos quatro queijos, espaguete ao molho pesto, espaguete com trufas, espaguete ao molho de sardinhas, espaguete a Ruffino, com molho de difícil identificação. (Justino também estranhou aquela obsessão pelo espaguete.) Ah!, havia ainda berinjela gratinada.
O paladar da comida do chef definitivamente não agradava. Os hóspedes permaneciam em absoluto silêncio diante desta evidência, temerosos de que o problema fosse a falta de educação do próprio paladar deles, não eram refinados o suficiente para apreciar os acepipes do chef. Portanto, melhor silenciar.
Intrigava a completa ausência de Ruffino durante o jantar; alguns hóspedes manifestavam o desejo de conhecê-lo, saber um pouco da experiência dele no dois estrelas Michelin de Roma, conferir se era verdadeira a lendária beleza do italiano, fama que já corria até os confins da Bahia; mas nada, ele nunca aparecia no salão, para frustração das moçoilas e das ávidas senhoras.
Na segunda semana do cardápio revolucionário de Ruffino Giancarlo Malldonado a situação tornou-se insustentável. Durante o dia não havia outra conversa entre os hóspedes, que cochichavam, Você gostou do espaguete de ontem?, Achei sem gosto, Faltava sal, A bolonhesa parecia carne de defunto de tão pálida, E a putanesca?, coitadas das putas... A comida era mesmo ruim.
Até que Andrea Luiggi, italiano nascido na Úmbria e radicado no Brasil há vários anos, grosso como um jacarandá do cerrado, hospedado há três dias na pousada, diante do salão repleto, gritou no meio do jantar:
– O rei está nu! O rei está nu! Esta comida é uma merda!
Foi uma correria dos diabos, Maria Clara acudiu incontinente, perguntou se havia alguma coisa errada, Está tudo errado! bradou Luiggi, Farsante! Pulha! Impostor! Incompetente! Embusteiro!, berraram alguns turistas mais exaltados, referindo-se naturalmente ao italiano. Justino Bretas ensaiou ar de indignação, Não é possível, nosso chef tem experiência internacional, Maria Clara sacudia a cabeça afirmativamente mas sem convicção, Clarinha chorava atrás da porta, as baianas de olhos arregalados, Álvaro não apareceu, muito menos o chef, escafedeu-se para local ignorado.
O jantar terminou em clima de indignação e suspense; os hóspedes recolheram-se aos seus aposentos, na manhã seguinte exigiriam providências do proprietário. Caiu a noite na Pousada Sol Encantado, noite de lua cheia.
Coincidência ou não, às seis horas em ponto da manhã seguinte ouviram-se palmas na portaria, pois não havia campainha na pousada. Era a Polícia Federal. Ruffino Giancarlo Malldonado, cujo nome verdadeiro era Giuseppe Provenzano, filhote do chefe da Cosa Nostra recém preso na cidade de Corleone, perto de Palermo, na Sicília, foi surpreendido pelos policiais ainda dormindo, trajando um belo pijama de seda verde-musgo.
O Delegado, com voz mansa educada firme, informou a Justino:
– O senhor deve comparecer à Delegacia de Polícia dentro de 24 horas, sob a acusação de albergar criminoso internacional, reconhecido mafioso, chefe da ramificação Máfia da Calábria, fugitivo da prisão italiana.
– Excelência, mas ele se apresentou aqui como chefe de cozinha...
– Pois saiba, Sr. Justino Bretas, que Giuseppe Provenzano aprendeu rudimentos de culinária em uma penitenciária italiana, onde cozinhava para os presos, incluindo os chefões da Máfia.
Mais não foi dito nem foi perguntado. O comboio composto de cinco carros da Polícia Federal desapareceu na poeira da estrada de terra da Bahia, levando Giuseppe Provenzano, o belíssimo Ruffino para os Bretas, sob os olhares desolados de Justino, Maria Clara, Clarinha, e um punhado de lindas baianas.