terça-feira, 5 de abril de 2016

Filhinho de papai



Ao tratar de Educação, tenho me referido com insistência neste blog sobre o fenômeno que tem feito dos adultos de hoje seres existencialmente impotentes. Porque os pais, na ânsia de tudo protegerem e controlarem, alimentaram nos filhos uma mentalidade de vítimas: seres frágeis e amedrontados que simplesmente não sabem como funcionar no mundo que existe fora do aquário. É o que podemos chamar de geração mimada.
Universidades privadas adotam cada vez mais práticas que antes eram características do ensino colegial, como reuniões entre pais e professores depois das primeiras provas, o acompanhamento das notas e da assiduidade pelas famílias no portal da instituição, reclamações dos pais diante de eventual reprovação do filho em alguma disciplina. Parece haver uma jogada de marketing: elas superprotegem os alunos para ganhar a confiança dos pais, aumentando assim o número das matrículas, promovendo a infantilização destes jovens, os chamados “mimados”.
O problema tem início bem mais cedo, este “processo de mimar” começa na primeira infância, quando se inicia a deseducação e os pais decidem atender a todo e qualquer desejo dos filhos. Eles se esquecem ou ignoram que a frustração é um eficiente desencadeador de aprendizado do processo de pensar.
E por que o fazem? Pelas mais variadas razões: fazem-no por excesso de amor (amor demais estraga); fazem-no por sentimento de culpa; fazem-no por falta de amor, por incapacidade de amar, supondo que suprir bens materiais – pencas de brinquedos – será capaz de compensar a falta de afeto.
Porém, a tirania das crianças leva à arrogância dos jovens, causada pela infantilização e o não desenvolvimento da autonomia no momento adequado.
Joseph Epstein relata que “Nos Estados Unidos, vivemos hoje uma infantocracia, estamos sob o poder das crianças. ... As crianças passaram de figurantes a protagonistas da vida doméstica, e cada vez mais atenção tem sido dedicada a elas, à sua criação, às suas pequenas conquistas, à melhora da relação que podem ter com pais e avós. Nos últimos 30 anos, pelo menos, temos despendido vastas quantias e angústias com nossas crianças, de um modo sem precedentes na vida americana e talvez na de qualquer outra parte do mundo. Tamanho é o peso de toda essa preocupação com as crianças que isso vem exercendo uma tirania muito peculiar, sutil, mas generalizada. É isso que chamo de infantocracia, uma opressiva, maçante e tristemente desorientada infantocracia.”
            E as consequências dessa obsessiva preocupação com a educação infantil já se faz notar no comportamento dos adolescentes e adultos jovens de hoje. Após 40 anos de trabalho como professor universitário, pude observar a nítida mudança de comportamento dos estudantes em sala de aula. O que Epstein chama de ausência de timidez, não reluto em chamar de franca e desafiadora agressividade, acompanhada de arrogância pretenciosa – o leitor perdoe-me o pleonasmo. As encantadoras crianças transformam-se em adultos excessivamente narcisistas, que tudo sabem – ou pensam que sabem –, diante de professores assustados, acuados, sem saber como lidar com um grupo estranho, relação que se torna ainda mais difícil exatamente por se tratar de grupo.
Tais ideias estão expressas em textos já publicados nesse blog:

            Agora volto ao assunto amparado por autoridade incontestável, o grande José Ortega Y Gasset (1883-1955), com a publicação da 5a edição de A rebelião das massas, tradução de Felipe Denardi (Vide Editorial, 2016). O capítulo dedicado ao tema em questão intitula-se, sob medida, A época do “filhinho de papai”.
            (Antes de mais nada, uma palavra acerca da curiosa expressão: o original, señorito satisfecho, foi traduzido com propriedade para o português por filhinho de papai.)
            O livro, publicado pela primeira vez em 1930, representa, segundo Julián Marías (que faz a Introdução da presente edição), o que “O Contrato Social de Rousseau foi para o século XVIII, O Capital de Marx para o XIX”; La rebelión de las masas é o equivalente do século XX.
            Assim tem início o texto de Ortega:

“Resumo: o novo fato social que se analisa aqui é este: a história europeia parece, pela primeira vez, entregue à decisão do homem vulgar enquanto tal. Ou dito na voz ativa: o homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo.
... Se olharmos para os efeitos da vida pública a fim de estudar a estrutura psicológica desse novo tipo de homem-massa, encontraremos o seguinte: 10, uma impressão nata e radical de que a vida é fácil, sobressalente, sem limitações trágicas; portanto, cada indivíduo médio encontra em si uma sensação de domínio e triunfo que, 20, lhe convida a se afirmar tal como é, dar por bom e completo seu depósito moral e intelectual. Esse contentamento consigo próprio o leva a se fechar para toda instância exterior, a não escutar, a não pôr em questão suas opiniões e a não contar com os demais. Sua sensação íntima de domínio lhe incita constantemente a exercer predomínio. Agirá, pois, como se só ele e seus congêneres existissem no mundo.”

            Caro leitor, pode haver algo mais atual em nossa sociedade contemporânea? E Gasset continua:

“Este personagem, que agora anda por toda parte e impõe sua barbárie íntima onde quer, é, com efeito, o menino mimado da história humana. O menino mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização – as comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização. ... É uma das tantas deformações que o luxo produz na matéria humana.”

            Gasset afirma que são exatamente as dificuldades que a vida nos apresenta que são capazes de despertar em nós nossas próprias capacidades: “Toda vida é luta, é o esforço por ser ela mesma.” E que constitui ingenuidade pensar que a abundância de meios favorece a vida:

“Um mundo sobressalente [com sobra, excessivamente rico, supérfluo] de possibilidades produz automaticamente graves deformações e tipos viciados de existência humana – que podem ser reunidos na classe geral “homem herdeiro”, da qual o “aristocrata” é só um caso particular, e o menino mimado outro; e mais outro, muito mais amplo e radical, é o homem-massa do nosso tempo..”

            Ainda falando das características do que o autor chama de “filhinho de papai”, elas se mostram perfeitamente compatíveis com o que foi exposto no início desta crônica: “é um homem que veio à vida para fazer o que lhe dê na telha”. E Gasset completa:

“De fato, o “filho de família” fabrica essa ilusão para si. E sabemos por quê: no âmbito familiar, tudo, até os maiores delitos, podem acabar impunes. ... O “filhinho de papai” é aquele que acredita poder se comportar, fora de casa, da mesma forma que em casa. Que acredita que nada é fatal, irremediável e irrevogável. Por isso pensa que pode fazer o que lhe der na telha.”

            Por isso afirmei acima que o “processo de mimar”, por razões várias,  começa bem cedo, na primeira infância, quando os pais decidem atender a todo e qualquer desejo dos filhos. Na vida adulta, as consequências em sociedade são bem definidas por Gasset:

“O homem-massa não firma o pé sobre a implacável firmeza de sua sina; antes, vegeta ficticiamente suspenso no espaço. ...É a época das “correntes” e do “deixar-se levar”. Quase ninguém oferece resistência aos redemoinhos superficiais que se formam na arte ou nas ideias, ou na política, ou nos costumes sociais. E por isso, a retórica triunfa mais que nunca.”

            (Ao pensar a Literatura, por exemplo, constatamos que a Crítica literária desapareceu, substituída pela resenha.)
            Interessante notar que Ortega Y Gasset inicia seu texto com a palavra “resumo”, seguida de dois pontos, e está tão somente apresentando o problema ao leitor. Porém, penso que deseja mesmo é resumir tudo, colocar toda a responsabilidade naquele que chamou de “homem vulgar”. Por isso conclui de forma brilhante e coerente:

“Não poderia se comportar de outra maneira esse tipo de homem nascido em um mundo organizado bem demais, do qual só percebe as vantagens e não os perigos. O ambiente o mima, porque é “civilização” – isto é, uma casa –, e não há nada que faça o “filho de família” mudar seu temperamento caprichoso, que o incite a escutar instâncias externas superiores a ele, e muito menos que o obrigue a ter contato com o fundo inexorável de seu próprio destino.”


            Esta é apenas uma pequena amostra do que trata A Rebelião das Massas. O filósofo espanhol tem muito mais a nos dizer nesse livro,  indispensável mesmo.