“Rio de Janeiro, 2 de março de 1869.
Minha querida Carolina,
Recebi ontem duas cartas tuas, depois de dois dias de espera. Calcula o prazer que tive, como as li, reli e beijei! A minha tristeza converteu-se em súbita alegria. Eu estava tão aflito por ter notícias tuas que saí do Diário à 1 hora para ir a casa, e com efeito encontrei as duas cartas, uma das quais devera ter vindo antes, mas que, sem dúvida, por causa do correio foi demorada. Também ontem deves ter recebido duas cartas minhas; uma delas, a que foi escrita no sábado, levei-a no domingo às 8 horas ao correio, sem lembrar-me (perdoa-me!) que ao domingo a barca sai às 6 horas da manhã. Às quatro horas levei a outra carta e ambas devem ter seguido ontem na barca das duas horas da tarde. Deste modo, não fui eu só quem sofreu com demora de cartas. Calculo a tua aflição pela minha, e estou que será a última.
Eu já tinha ouvido cá que o Miguel alugara a casa das Laranjeiras...”
Este fragmento de carta, endereçada à Sta. Carolina Xavier de Novais, por Machado de Assis, encontra-se no quinto volume de Machado de Assis – Correspondência, em cinco volumes, editada pela Global Ed. e pela Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2019. A coordenação da obra é de Sergio Paulo Rouanet, com organização e comentários de Irene Moutinho e Sílvia Eleutério.
O projeto que resulta nesta publicação é monumental, com mais de sete anos de trabalho minuciosíssimo, cada texto repleto de notas explicativas que nos remetem a diferentes lugares, pessoas, acontecimentos, circunstâncias. Quem tiver paciência e gostar desse tipo de literatura – sim, porque se trata mesmo de Literatura – há de apreciar a leitura como se lesse um romance, recheado de história, costumes, a fala de uma época, e, mais que tudo, a biografia do nosso maior escritor, Machado de Assis.
No prefácio desse quinto volume (correspondência de 1905 a 1908), Marco Lucchesi, presidente da ABL, chama nossa atenção para dois aspectos fundamentais: a personalidade de Machado e sua época:
“Cada um de nós traz uma ideia de Machado. Ideia vaga, talvez, difusa, mas eminentemente sua, apaixonada e intransferível. Como se guardássemos um fino véu a se estender sobre a cidade do Rio de Janeiro.
Paisagem pela qual vamos fascinados e diante de cuja natureza suspiramos. Todo um rosário de ruas e de igrejas – Mata-Cavalos, Santa Luzia, Latoeiros e Candelária. Nomes-guias e sonoridades perdidas. Morros derrubados. Praias ausentes. Tudo o que perdemos move-se ainda nas páginas de uma cidade-livro.”
A leitura dessa Correspondência há de apurar a ideia que fazemos do homem Machado. Voltemos à carta acima, endereçada a Carolina. Espantou-me o longo primeiro parágrafo! É evidente a aflição do homem apaixonado; ainda não sei se essa emoção é a responsável pela prolixidade e repetição do mesmo tema – a demora das cartas! – ou se Machado era mesmo assim, meio confuso. Não é o que deixa transparecer a obra dele, porém, uma carta íntima revela coisas que um romance, conto ou poema do autor jamais mostrariam.
As duas cartas que Machado recebe da amada se misturam com as duas que ele escreve; a demora dos correios traz aflição desmedida; ele troca o dia da semana e se confunde com o funcionamento das barcas, e pede desculpas!; parece obcecado com os horários; mistura sua aflição com a que pressupõe de Carolina; o sofrimento é de ambos os dois; é tamanha a agonia que engole uma palavra ao final do parágrafo (“Calculo a tua aflição pela minha, e estou que será a última”); ele está certo de que “será a última”?
Curioso mesmo é que, após o parágrafo concentrado no tema das cartas e na aflição dos enamorados, logo em seguida o assunto muda de forma radical, súbita, e Machado volta à Terra, ao mundano cotidiano, e cita Miguel (irmão de Carolina, informa a nota) e o aluguel da casa em Laranjeiras, bairro agradabilíssimo do Rio de Janeiro, suponho até os dias atuais, onde morei por alguns anos em companhia de minha família.
Que Machado é este que o parágrafo de uma carta deixa transparecer? Sei apenas que o leitor se deleita!