Em sua coluna do último domingo (22/10/2017)
para a Folha de S. Paulo, Dá para ser ético com animais?, Hélio Schwartsman, logo de início
coloca para os não-vegetarianos a desconfortável questão:
“Se
você é um ser humano com bons sentimentos, provavelmente se opõe à vaquejada,
uma forma de exploração animal que, embora não resulte na morte do bovino,
estressa-o e pode feri-lo. Mas, se somos contra a vaquejada, como admitimos o
hambúrguer?”
Em seguida o colunista faz referência
ao livro de Hal Herzog, que traz o curioso título Some We Love, Some We Hate, Some We Eat (alguns nós amamos, alguns
odiamos, alguns comemos). Através de pesquisas científicas e histórias envolvendo
humanos e não humanos, ele trata da antrozoologia, a nova ciência que estuda as
interações entre pessoas e animais.
A coisa complica quando questões éticas
são formuladas: “Quais são nossas obrigações para com animais? Podemos
mantê-los como pets? Utilizá-los em experiências científicas? Comê-los?
Matá-los para evitar zoonoses? E se for para nossa diversão, como nas rinhas de
galo?”
Afirma Schwartsman: “A conclusão a que
Herzog chega é inequívoca: a única consistência na forma como nos relacionamos
com animais é a inconsistência. Qualquer que seja a posição ética que adotemos,
ela levará a paradoxos.”
Esta resposta
evidentemente é insatisfatória. Fui buscar então no excelente Vocabulário da
Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (Martins Fontes, 2001), a definição de Clivagem do Ego:
“Expressão usada por
Freud para designar o fenômeno muito particular – que ele vê operar sobretudo
no fetichismo e nas psicoses – da coexistência, no seio do ego, de duas
atitudes psíquicas para com a realidade exterior quando esta contraria uma
exigência pulsional. Uma leva em conta a realidade, a outra nega a realidade em
causa e coloca em seu lugar uma produção do desejo. Estas duas atitudes
persistem lado a lado sem se influenciarem reciprocamente.”
Dois conceitos fundamentais
em Psicanálise (e que interessam à compreensão do comportamento humano) são
aqui apresentados: a “exigência pulsional” e a “produção do desejo”.
Ora, sabe-se, em
pouquíssimas palavras, que o consumo de carne para o humano mais primitivo foi
fator decisivo para sua evolução, já que havia menos trabalho digestório e mais
sangue para irrigar o cérebro, que assim pôde desenvolver-se. Podemos pensar
que tal fato, ao longo de milhares de anos, tornou-se exatamente uma exigência
pulsional. E não é difícil imaginar que em certa altura da evolução do Homo sapiens surge o desejo de ingerir
um suculento pernil!
Não é fácil abrir mão
deste comportamento tão primitivo, o de comer carne (verdadeira pulsão, ou
instinto, embora haja muita discussão sobre o emprego desses dois termos).
Penso, porém, que há suficiente consistência, ao contrário do que afirma
Schwartsman, nos conceitos estabelecidos por Freud, especialmente nos artigos Fetichismo (1927), A divisão do ego no processo de defesa (1938) e em Esboço de psicanálise (1938). Vale a
pena conferir.