terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O direito de atravancar


A Folha de São Paulo desta terça-feira, 19 de fevereiro, publicou texto de Hélio Schwartsman intitulado Missa em latim, que considero excepcional pela lucidez, coragem, precisão, poder de síntese, atualidade, e outros atributos mais, tantos que não resisto trazê-lo para o Louco por cachorros! Desde já, aqui vai o link para o artigo original, para os que ainda não o leram e desejem fazê-lo: 


Para os mais preguiçosos, apresento um resumo do que foi escrito.

“Ao contrário da esmagadora maioria dos comentários que li na imprensa, torço para que o conclave eleja um papa tão ou mais conservador do que Bento 16. ...E o essencial é que hoje, ao contrário do que ocorria alguns séculos atrás, a religião já não precisa atravancar a vida de ninguém. ...Se, no passado, um herege podia ser assado em praça pública e a excomunhão significava uma sentença de morte em vida, agora, pelo menos nos países democráticos, os ensinamentos morais da Santa Sé não impedem uma pessoa de viver como preferir, inclusive no campo da sexualidade. ...Teríamos um problema de saúde pública se as autoridades dessem ouvidos ao que o Vaticano prega em relação à camisinha, mas, felizmente, isso já não ocorre há décadas no Brasil. ...E por que quero um papa conservador? Para mim, que não estou preocupado com a disputa por fiéis nem com a vitalidade da religião, só o que torna a Igreja Católica interessante é seu aspecto museológico, isto é, a janela que ela abre para o passado. Por razões opostas, eu e Marcel Lefebvre preferimos a missa em latim.”

            Não se pode deixar de reconhecer o papel da Igreja Católica na formação da cultura ocidental, especialmente no que diz respeito às artes. Porém, nos dias de hoje, tal importância tem caráter puramente museológico, como afirma Schwartsman. Se me perguntarem se vale a pena uma visita turística ao Vaticano, direi que sim, sem pestanejar. Não se pode morrer sem ver ao menos uma vez a Capela Sistina! O que não dá o direito à Igreja de proibir aos fieis o uso da camisinha. Ou propalar que o ato sexual só pode ser praticado com o propósito da procriação. (Há alguns anos, o arcebispo da Bahia à época não autorizou um certo casamento porque o homem era tetraplégico e aquela união não poderia gerar filhos.) São mesmo coisas dignas de museu!
            
         Há mais de cem anos Freud esclareceu a importância da sexualidade para o ser humano, pelo que pagou altíssimo preço diante das impiedosas e preconceituosas críticas – que recebe até hoje – frente à intolerância e ao obscurantismo conservador. Por que então aceitar passivamente a intolerância e o obscurantismo da Igreja com relação a gravíssimos problemas de saúde publica, como a AIDS e tantas outras doenças sexualmente transmissíveis, discutindo exaustivamente, como a imprensa vem fazendo, se o próximo Papa deve ser mais conservador ou mais liberal? Por mais liberal que venha a ser, o que ninguém acredita, o fato é que a Igreja continuará atravancando a vida das pessoas com seus dogmas e proibições moralistas. Em pleno século XXI, ainda rezando  missa em latim.

Assim penso eu, na boa companhia de Hélio Schwartsman.

O difícil jogo da convivência


Confesso que não me considero um leitor de Rubem Alves, e muito menos admirador dos escritos dele. Mas devo admitir que aprecio de modo muito especial a analogia que ele faz entre o casamento tênis e o casamento frescobol.(*)  Ressalta o autor: “Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.”
            No jogo de tênis, ganha quem derruba a bolinha na quadra alheia; cada um procura jogar a bola onde o outro não está; o jogador negaceia, engana, ilude, desorienta, induz a erro, falsifica, mente, utiliza-se de subterfúgios nem sempre lícitos; cada um procura o ponto fraco do outro, e quando encontra, derruba-o; o objetivo é apenas um, o de vencer o adversário; e se há um vencedor, por consequência haverá um perdedor. São dois adversários, afinal!
No jogo de frescobol, também jogado com dois jogadores, duas raquetes e uma bola, os dois ganham quando a bola não cai, e ambos perdem quando a bola cai. E para que ela não caia, a bola deve ser jogada sempre onde o outro está; o erro de um, quando ocorre, é logo corrigido pelo acerto do outro; a bola difícil é tornada fácil, a bola que está para cair é “salva” por alguém que se esforça para tal; enfim, para que o jogo prossiga, sem vencedores ou perdedores, pois não há adversários. Apenas a alegria de jogar!
Depois de me utilizar umas tantas vezes da metáfora tênis versus frescobol em minhas sessões, passei a acrescentar duas questões que me parecem fundamentais quando se trata de casamento, e que devem ser formuladas antes mesmo de iniciado o jogo. A primeira pergunta é se ambos desejam mesmo jogar. A segunda, que jogo desejam jogar?
Pode parecer óbvio perguntar àqueles que exprimem o desejo de viverem juntos, porque se amam, se desejam mesmo jogar o jogo da convivência. Suas consciências dirão que sim, porque se amam. O que dizer das razões do inconsciente, tão difíceis de serem explicitadas? Posso pensar num grande número de motivos para se viver com alguém, sem levar em conta a importância do que estou chamando de o jogo da convivência. Talvez o mais frequente deles, e muito humano, seja o medo infantil de estar só: “Casei-me para não ficar só.”
Respondida afirmativamente a primeira questão, cabe aos dois indivíduos decidirem que jogo desejam jogar. Mais uma vez, não me parece nada óbvio, em termos inconscientes, que saibam de antemão (quer dizer, que tenham consciência) que jogo desejam jogar: tênis ou frescobol? Porque não me parece nada estranho, ao contrário, temos incontáveis exemplos ao nosso redor, que duas pessoas queiram jogar tênis ao longo de toda uma vida de casal. E assim o fazem, apenas dando vasão à crueldade, competição, ciúme, inveja, ódio, enfim, estes sentimentos tão humanos, utilizando-se daqueles predicados enumerados acima, praticados no jogo de tênis: jogar a bolinha sempre onde o outro não está. Estamos a falar de gente, apenas isso. Porém, seria interessante que ambos tivessem a consciência disso, de que desejam jogar tênis, seja lá qual for o preço que tenham que pagar, ou as consequências que tenham que experimentar.
Uma terapia psicanalítica pode ajudar a desvendar impulsos e desejos inconscientes, tornando mais clara a questão se estão mesmo dispostos a jogar/conviver, e que jogo desejam jogar/viver. Também pode ajudar àqueles que estão jogando tênis e que desejam mudar para o frescobol, para poderem realizar a simples, mas nada fácil, alegria da convivência.