Galeria de Família
embora maria tenha lavado minhas fraldas quando nasci, pois não as havia descartáveis na época, no mês de janeiro mais chuvoso de que se tem notícia até hoje na capital, a primeira lembrança que dela tenho data de nossa mudança para a casa vizinha à casa de meus avós no interior, e eu já era bem crescidinho, e maria era empregada de breno e cici desde sempre, salvo antes de maria chegar à casa de meus avós, e aí residia o mistério.
maria era cozinheira e a cozinha o seu reino. lá ela mandava e desmandava, escolhia os ingredientes no mercado municipal, carnes, verduras, legumes, frutas, os mais variados temperos, incluindo a pimenta malagueta, a indispensável banha de porco que emprestava sabor característico às comidas, estipulava ela mesma o cardápio da semana, às quartas pastel de queijo, carne, palmito ou frango, a especialidade dela, embora não fossem menos apreciados o torresmo, o feijão mulatinho, o bife acebolado às segundas, o frango ao molho pardo às quintas, o arroz soltinho todo santo dia. manjar de coco com ameixas, a sobremesa preferida da avó. no verão, sorvete de abacaxi.
não havia quem desconhecesse a infinita bondade de maria. analfabeta, meio índia, quase sempre coberta de andrajos, porém boníssima. chaninho, o seu gato predileto, com tinturas de angorá; havia outros, inúmeros, apareciam e desapareciam com o passar dos dias, apenas chaninho permanecia, alimentado com carde de primeira, para desespero de cici. quando alguma gata da rua dava cria, maria pegava os filhotinhos, enfiava-os num saco com uma pedra, jogava da ponte na correnteza do ribeirão dos alves.
– coitadinhos, não terão o que comer, alegava pesarosa.
havia, porém, um mistério: não se falava uma palavra sobre o passado de maria. anos mais tarde ouvi o comentário de que ela era filha bastarda de um irmão de meu avô, que então tomou para si a guarda da menina.
hoje sei, também sou filho de maria, que me ajudou nos meus primeiros dias de vida. sem dúvida, faz parte da família.
Fotos: AVianna, Guaratinguetá, SP.