quarta-feira, 8 de abril de 2015

Diários




Para algumas pessoas a ideia de um Diário remete ao comportamento adolescente de registrar cenas banais do cotidiano, de modo meloso, derramado, num caderninho cor-de-rosa. Nada mais enganoso. Trata-se de gênero literário dos mais interessantes, desde que explorado por autores que sabem valorizá-lo.
            Tenho destacado com insistência neste blog o que chamo de escrita terapêutica. Penso que uma possível comprovação de minha tese é a publicação, por incontáveis autores de renome, de um certo tipo de literatura denominado Diário.
            Sob o ponto de vista puramente literário, pouca coisa compara-se aos Diários de Miguel Torga. Pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha (Vila Real, São Martinho de Anta, 1907Coimbra, 1995), Torga foi um dos mais influentes escritores portugueses do século XX. Destacou-se como poeta, contista, memorialista, romancista, ensaísta e autor de peças de teatro.
           Escreveu 16 volumes de Diários, de 1941 a 1993, todos editados pela Coimbra, Portugal, edição do autor, com o mesmo formato, capa, papel, contendo poemas, crônicas, aforismos, observações emocionadas sobre fatos banais do cotidiano. O fato de ter exercido a Medicina – era otorrinolaringologista – no interior de Portugal enriqueceu-lhe a experiência de vida, o que foi registrado magistralmente nos Diários. A forma, inigualável!
            Torga encerra o último volume dos Diários, a 10 de dezembro de 1993, com o poema:

Réquiem por mim

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz de ir de encontro ao mar
Desaguar.
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
           
            Outro bom exemplo do gênero são os Diários de Franz Kafka, iniciados em 1910 e findos em 1924, plenos de angústia e tormento. Em 12 de junho de 1924 ele escreveu:

“Sempre ansioso no instante de escrever. Isso se compreende. Cada termo, na mão dos espíritos – este impulso na mão é o toque que os caracteriza – torna-se um flecha atirada àquele que fala. E muito especialmente uma observação como esta. E assim até o infinito. O consolo estaria em que pudéssemos dizer: Tal sucederá, quer o desejes, ou não. E a tua parte de vontade apenas debilmente colabora. Mais do que o consolo, seria poder verificar: Tu também possuis armas.”

            Kafka escreve para si próprio, esta a impressão que nos transmitem seus Diários.
           
            Entre nós, recentemente, sob a organização de Ésio Macedo Ribeiro, a Civilização Brasileira (2013) publicou os impressionantes Diários de Lúcio Cardoso, um tijolo de 740 páginas, que eleva o gênero ao seu mais alto nível. O grande autor de Crônica da casa assassinada escreve em 1942:

“Apanha-me agora a sensação de vazio que costumo sentir e que certamente não é a nostalgia de qualquer das certezas perdidas. É impossível viver assim. Solto-me, largo as amarras e vou; não há nada que me prenda. Há horas em que verdadeiramente saio do mundo. Quem sabe mesmo se não me dissolverei? Pouco a pouco os pensamentos, as ideias, a consciência vão fugindo, fugindo, e assim talvez eu acabe por acabar de todo alguma vez.
Apavoro-me com isso.”

Alguma coisa aproxima os três trechos aqui apresentados, vindos de autores tão diversos no tempo, no estilo, na própria literatura de cada um. Mas há algo de comum entre eles. Penso que seja a intimidade transmitida pela forma Diário.

Ego


O famoso escritor foi convidado para um debate sobre seu último livro. Não houve debate. Ele falou de si mesmo todo o tempo.

Literatura minimalista




“A chuva sovina conta e reconta suas moedas nas latas do quintal.”

Dalton Trevisan, em seu livrinho Ah, é? (Ed. Record, 3a ed., 2013), chamou sua coleção de 187 relatos curtos de ministórias.

A lindíssima ministória acima, extraída do livro, mais parece um poema:

A chuva sovina conta
e reconta
suas moedas
nas latas do quintal.

Bem que poderia ser um haicai:

a chuva sovina
cai nas latas do quintal
– conta suas moedas

Ou seria uma aforismo?

O avaro conta suas moedas como pingos de chuva numa lata de quintal.

            Tenho realizado com frequência este exercício no Loucoporcachorros, o de buscar a melhor forma para um texto minimalista – aquele que procura registrar uma ideia com o menor número possível de palavras.

A razão desta síntese é possibilitar ao leitor um outro exercício, o de expandir tais ideias através de suas próprias ideias. Um romance de 700 páginas, bem escrito, produz efeito oposto sobre o leitor: aprisiona-o de tal forma no enredo interessantíssimo que ele não terá nada a acrescentar de si mesmo. Nada contra.

Mas a ministória do Dalton Trevisan é mesmo linda! Mais parece um poema.