sábado, 9 de novembro de 2019

Mulher lava os pés do menino






Encantado por este pequeno desenho, os olhos a marejar, permaneci um longo tempo admirando-o. Se a mulher lava os pés do menino é porque os pés do menino estão sujos. 
Imediatamente me veio à mente o poema de Fernando Pessoa, cujo primeiro verso é Num meio-dia de fim de primavera, em que o menino é completamente humano, e por isso suja os pés ao brincar na Terra. Reproduzo aqui as três primeiras estrofes que fazem parte do livro O guardador de rebanhos (F.P., Obra Poética, Nova Aguilar, 1976): 

“Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida, 
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e  justiça!”

            
            Tanta coisa pode acontecer “Num meio-dia de fim de primavera”... Basta dar liberdade à imaginação, sentimentos e emoções. Não foi preciso nem era possível me lembrar de todo o poema de Pessoa, mas a força das ideias, expressas na melhor forma poética possível  – “tornado outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva” –, foi suficiente para tornar aquele momento inesquecível.
             O desenho pertence à Faculdade de Bellas Artes, Porto, Portugal.

Homem vitruviano

“O Homem vitruviano de Leonardo é a materialização de um momento em que a arte e a ciência se combinam para permitir que a mente de um mortal pudesse abordar questões atemporais sobre quem somos e como nos encaixamos na grande ordem do universo. Também simboliza um ideal do humanismo que celebra a dignidade, o valor e o agente racional dos seres humanos como indivíduos. Dentro do quadrado e do círculo, podemos ver a essência de Leonardo da Vinci, e também a nossa própria, desnuda e de pé sobre a interseção entre o mundano e o cósmico.”

                                                     Walter Isaacson (Intrínseca, 1917)





            O capítulo Homem vitruviano, na biografia de Isaacson, descreve pormenorizadamente a origem desta ideia, a partir de Marcos Vitrúvio Polião, nascido por volta do ano 80 a.C., autor do único livro sobre arquitetura da Antiguidade Clássica, intitulado De Architectura
            Abaixo do desenho, Leonardo escreveu:

“Se você abrir as pernas o suficiente para que sua cabeça seja rebaixada em um quatorze avos de sua altura e levantar os braços até que seus dedos toquem a linha que passa pelo topo da cabeça, saiba que o centro dos membros estendidos será o umbigo, e o espaço entre as pernas formará um triângulo equilátero.”           

            Quando o curador da Gallerie dell`Accademia, em Veneza, permitiu que o biógrafo Walter Isaacson tivesse acesso ao desenho original, a experiência emocional descrita por ele é muito semelhante a nossa, quando estamos frente a frente com a obra, mesmo que esta esteja atrás de um vidro. Eis a descrição dele: “...fiquei chocado pelos entalhes feitos pela ponta metálica de Leonardo e pelos doze furos deixados pela ponta do compasso. Experimentei a sensação íntima e estranha de presenciar a mão do mestre em ação mais de cinco séculos atrás.”
            O que experimentei ao ver o desenho, mesmo atrás de um vidro, foi muito mais que “a sensação íntima e estranha”. A experiência foi íntima, não poderia ser de outra forma; uma certa sensação de estranhamento também ocorreu, admito, e ainda não tenho explicação para ela; porém, o que prevaleceu foi a emoção oceânica de poder ver, olhar, reparar em uma obra de arte inigualável, realizada – porque foi uma verdadeira realização – pelo gênio de Leonardo, bem ali na minha frente, 500 anos depois de criada. 
Continuo a procurar as melhores palavras para exprimir tais sentimentos e não as encontro. Emoção emoção emoção.

Um pequeno caderno


Assinala Walter Isaacson, em sua magistral biografia Leonardo da Vinci (Intrínseca, 2017), em capítulo especial sobre Os cadernos de Leonardo:

“Por ser descendente de uma longa linhagem de tabeliães, Leonardo d Vinci tinha talento inato para manter registros. Rascunhar observações, listas, ideias e desenhos foi algo que aflorou naturalmente. No começo da década de 1480, pouco depois de sua chegada a Milão, ele deu início a uma prática que o acompanharia pelo resto da vida: a de fazer registros com regularidade. Alguns dos cadernos começaram como folhas soltas do tamanho de um jornal em formato tabloide. Outros eram pequenos livretos encapados em couro ou papel velino feito um livro de bolso ou até menores, que ele levava consigo para tomar notas.”

            A respeito das mil e uma utilidades de tais cadernos, é o próprio Leonardo quem fala, segundo Isaacson:

“Um dos propósitos dos cadernos era o de registrar cenas interessantes, sobretudo aquelas envolvendo pessoas e emoções. “Conforme você andar pela cidade”, escreveu em um deles, “observe constantemente, faça anotações e analise as circunstâncias e o comportamento dos homens enquanto eles falam e discutem, ou riem, ou partem para as vias de fato”. Com isso em mente, Leonardo levava um caderninho pendurado no cinto.”








            Passados 500 anos, poder ver, olhar e reparar em um desses preciosos caderninhos – que viviam pendurados no cinto do homem – não é pouca coisa. Saber que ele não se interessava apenas por arte e ciência, mas também pelo comportamento das pessoas, isso engrandece ainda mais nossa admiração pelo gênio. Emociona como o diabo.