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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

As orelhas de Eunice


Eunice foi assassinada com cinco tiros e requintes de crueldade. Seus documentos foram roubados, de modo que a identificação que restou, pela inspeção grosseira do corpo, foi a de que se tratava de um travesti. Após a necropsia no Instituto Médico Legal o corpo foi enterrado como indigente. O atestado de óbito trazia apenas o nome Homem.
Um mês depois, com a ausência da moça, a família, residente em estado  distante, chegou ao Rio de Janeiro, onde o crime foi cometido, para desvendar seu desaparecimento. Constatado o assassinato, restou aos familiares reclamarem o corpo para oferecer sepultamento digno à filha. Durante uma semana, mãe e irmã da morta postaram-se à entrada do IML, na tentativa de serem atendidas. A burocracia para que o nome de Eunice constasse do atestado de óbito foi verdadeiro pesadelo. A família continua lutando para consegui-lo.
Como se tratava de morte de suposto indigente, nenhuma investigação policial foi deflagrada. Passados muitos dias, as pistas do crime esfumaçaram-se por completo. Caso encerrado.
Celso Alfredo, detetive particular, tomou conhecimento desses fatos pelas páginas policiais de jornal popular do Rio. Desde logo percebeu que não conseguiria qualquer recompensa pecuniária oriunda da pobríssima família de Eunice; mesmo assim, por razões ainda obscuras para este narrador, interessou-se pelo caso.
Não foi difícil descobrir o ponto onde Eunice prestava serviços sexuais pois o local onde o corpo foi encontrado estava registrado no boletim de ocorrência policial. Na primeira visita, Celso Alfredo foi muito mal recebido pelas colegas de trabalho da vítima, desconfiadas das intenções do detetive. Depois de muita conversa e alguns agrados, Judite, que compartilhava um quarto na Lapa com Eunice durante o último ano, resolveu abrir o bico. Foi preciso que o detetive a levasse a um restaurante caro na Rua Barão da Torre, em Ipanema, especializado em frutos do mar, local bem distante da cena do crime, para que ela se dispusesse a falar.
Logo no início de seu relato a moça derramou lágrimas sinceras, considerava-se amiga da morta, vítima, segundo ela, de homem poderoso, influente, riquíssimo, sempre dirigindo um carrão – cada semana um carro diferente! –, mas que não passava de um maníaco sexual. Ela havia alertado a amiga sobre o perigo daquele relacionamento, porém Eunice não lhe dera ouvidos, engambelada pelo ricaço. O problema era que ela nunca soubera o verdadeiro nome do homem: Eunice chamava-o de Príncipe. Fotos dos dois juntos em algum passeio, nem pensar. Prostitutas e travestis que exerciam na área nunca viram o tal Príncipe.
Celso Alfredo estava diante de um caso difícil. O que os jornais não noticiaram nem Celso Alfredo revelou a Judite foi um detalhe insólito do laudo de necropsia: a ausência parcial de ambas as orelhas da vítima, que apresentavam marcas de dentadas, como se tivessem sido comidas pelo assassino. Quando Judite chamou o homem de maníaco sexual, diante das orelhas comidas, dos cinco tiros de pistola 9 mm, e das 38 facadas distribuídas por todo o corpo, o detetive ligou os pontos do quebra-cabeça e sentenciou, Príncipe é um psicopata perigoso.
Passaram-se dois meses quando ele resolveu acreditar que a alcunha de Príncipe poderia ser uma pista concreta para a solução do enigma, e não apenas um apelido carinhoso entre Eunice e o amante. Como todo detetive, possuía uma rede fabulosa de contatos, que foram todos acionados: Você conhece alguém chamado Príncipe? Ninguém respondeu. Celso Alfredo vasculhou a Internet incansavelmente e nada. Pensou em desistir. A família já havia enterrado o corpo e regressado para a longínqua cidade onde residiam. Por que ele haveria de continuar quebrando a cabeça diante de um crime aparentemente insolúvel? Mas como permitir que um psicopata desse quilate andasse por aí, à solta? Sem dúvida, ele voltaria a matar, matutava o detetive, um homem de escrúpulos.
Batata!, diria Nelson Rodrigues! Quatro meses desde a morte de Eunice os jornais noticiaram que um travesti conhecido pelo nome de Marluce fora encontrado morto num hotel barato do Estácio, com ambas as orelhas decepadas rente ao crânio, e que as mesmas não foram encontradas pelos peritos que recolheram o corpo. A Polícia não ligou os dois crimes – o primeiro, de fato, nunca fora investigado – mas Celso Alfredo matou a charada sem pestanejar, Aí está o nosso homem!
O incansável detetive repetiu o método anterior, descobriu o ponto do travesti, localizou as colegas de Marluce, não foi bem aceito de início, insistiu, levou Lucimar, amiga da nova vítima, para almoçar na Barão da Torre, e ficou sabendo que Marluce tratava seu homem por Príncipe! Era a prova que necessitava para acionar a Polícia. Procurou então seu amigo Espinosa, Delegado Titular em Copacabana, para quem relatou em minúcias os fatos até então por ele investigados. Vamos atrás desse Príncipe, homem poderoso, influente, riquíssimo, sempre dirigindo um carrão – cada semana um carro diferente! –, mas que não passa de um maníaco sexual, afirmou Espinosa, repetindo as palavras de Judite, Essa mulher sabe das coisas.
A despeito da disposição, prestígio e fama do Delegado, verdadeira lenda em Copacabana, personagem de romances policiais de autor de renome, ainda mais auxiliado por Celso Alfredo, agora convidado a frequentar a cantina de comida italiana no Bairro do Peixoto, as buscas deram em nada.
Até que, depois de dois meses de investigação, Espinosa foi informado de que uma câmera de rua postada na Lapa havia flagrado a passagem de um Lamborghini branco, no início da madrugada, exatamente no dia da morte de Marluce. É um dos carros do Príncipe, o nosso perverso milionário, exclamou Celso Alfredo. Espinosa não moveu sequer um músculo da face, enigmático.
Localizaram com facilidade o dono do carro, residente na Vieira Souto, prédio em que cada apartamento ocupava todo um andar, todos com vista para o mar, seis andares ao todo. Espinosa desceu até a garagem e encontrou pelo menos quinze automóveis de luxo, incluindo o Lamborghini branco. Com a autorização do porteiro, subiram até o sexto andar para informal e preliminar conversa com o Dr. Álvaro Martins de Castro Lima e Albuquerque, proprietário do carro. Dr. Álvaro apresentou o álibi perfeito: estava em Paris no dia do crime, e o passaporte era a prova definitiva de que falava a verdade. Celso Alfredo quis esticar a conversa mas Espinosa cortou-lhe a fala, certo de aquele homem não era o facínora que procuravam.
Era preciso entrevistar os demais moradores do prédio, gente de posses, donos de carros de luxo e apartamentos de frente para o mar de Ipanema. Desceram até a portaria do Edifício Chopin para obter informações com o porteiro, negão de metro e noventa de altura, sorriso largo, dentes alvíssimos, malhado, bonito o homem, além de simpático e prestativo, e que morava no próprio prédio, em um quartinho nos fundos, O banheiro fica do lado de fora, mas tudo é muito limpo, muito arrumado, informou o funcionário.
Espinosa anotava em um pequeno caderno o nome dos moradores e os respectivos apartamentos quando, de repente, abre-se a porta do elevador e sai uma senhora muito bem vestida, nos seus sessenta anos, coberta de joias, cabelo arrumado, belo lenço colorido no pescoço, sapatos Loubotin de sola vermelha, e com voz clara e altissonante pergunta ao porteiro, Príncipe, Você Pode Trazer O Meu Carro?
Disfarçadamente Espinosa pediu apoio policial pelo celular, mas conseguiu que Príncipe lhes mostrasse o quarto onde morava, enquanto era submetido a um despretensioso interrogatório por parte de Celso Alfredo, Há quanto tempo trabalha no Edifício Chopin?, Onde nasceu?, Tem família no Rio?, enquanto o Delegado vasculhava com os olhos o pequeno recinto. Súbito, Espinosa dirigiu-se a um canto do aposento que parecia com uma cozinha, abriu a geladeira Consul, examinou-a com cuidado, e perguntou ao Príncipe, O que você pretende fazer com essas duas orelhas? Temperar o feijão, respondeu Príncipe calmamente.


domingo, 13 de março de 2016

Em busca do Santo Graal


Fagundes considerava-se o melhor detetive do mundo. O fato do diploma de detetive exibido orgulhosamente na parede de seu pequeno escritório ter sido obtido através de um curso por correspondência de qualidade duvidosa, isso em nada diminuía sua autoconfiança. Gostava de repetir Mais inteligente do que eu nem Sherlock Holmes, é o que alardeava apenas para os íntimos, que não gostava de exibir-se para o grande público, Faz parte de minha estratégia profissional.
            Fagundes vivia à espera de um Grande Caso, que o revelaria para o mundo, fazendo jus a sua astúcia incomparável, aguda e perspicaz inteligência, sagacidade de mestre. Quando soube pelos jornais que a FIFA iniciaria buscas para descobrir o possível paradeiro da Taça Jules Rimet, conquistada definitivamente pelo Brasil na Copa de 1970 no México, Fagundes perdeu o sono. Era a oportunidade que esperava, e que o deixou num estado de excitação quase delirante.
            O troféu havia sido roubado do prédio da CBF, no número 70 da Rua da Alfândega, centro do Rio de Janeiro, na noite do dia 19 de dezembro de 1983. A bem da verdade, a Taça já havia sido roubada em 1966 e recuperada pela Scotland Yard, mais precisamente pelo cãozinho Pickles.
A Jules Rimet era motivo de orgulho nacional, símbolo da supremacia no futebol – o tricampeonato mundial –, e para a ditadura vigente à época, da grandeza e prosperidade nacionais. O roubo teve grande impacto na população, a imprensa ocupou-se dele com minúcias, a Polícia Federal foi prontamente mobilizada, ainda mais que o objeto do furto continha 3,8 quilos de ouro, uma verdadeira fortuna. A Taça jamais foi encontrada.
Fagundes nunca acreditou na versão divulgada pela polícia, de que ela havia sido derretida, o ouro vendido a preço de mercado. Não acreditou porque nunca desejou acreditar. Mas havia também um fato muito mal explicado, ou para ser mais preciso, nunca explicado porque esdrúxulo, estapafúrdio, sem sentido, o fato de que a certa altura dos idos de 1983, a Jules Rimet original encontrava-se na vitrine da sala de troféus da CBF, enquanto que num cofre lacrado repousava a réplica.
Na fértil imaginação investigativa de Fagundes, Roubaram a réplica para despistar o roubo da taça original!, dizia ele, fato bastante para que tivesse a certeza de que a Taça ainda seria encontrada, intacta, reluzente, a restaurar o orgulho da nação, humilhada que fora com o roubo de troféu conseguido com tanto empenho e arte pela Seleção Brasileira.
Agora, para grande surpresa de Fagundes, Guy Oliver, curador do novo museu da FIFA, também acredita que o troféu mais cobiçado do esporte mundial talvez não tenha sido derretido. Oliver deseja exibir a Jules Rimet – que ele chama de Santo Graal do futebol – em Zurique, em 2019. Para tanto, uma equipe de especialistas nomeados pela FIFA dará início às buscas. Porém, Fagundes há de trabalhar no anonimato, à sombra, longe dos holofotes da mídia, seguindo seu instinto, por caminhos nunca explorados, É a minha chance de entrar para a História, meu nome inscrito no museu da FIFA.
Começou por procurar um velho amigo jornalista da extinta Última Hora, Álvaro de Carvalho, que lhe falara sobre um tal Eustáquio, que trabalhava como faxineiro no número 70 da Rua da Alfândega, centro do Rio de Janeiro, à época do roubo. Homem fechado, caladão, carrancudo, Eustáquio nunca fora sequer mencionado pela Polícia Federal durante as investigações. Álvaro ficou sabendo que ele se mudara para Piracicaba, interior de São Paulo, logo após o escândalo, e lá comprara um sítio, propriedade pequena porém bem cuidada, com casa confortável, horta, pomar, galinheiro, duas ou três vaquinhas leiteiras, tudo muito bem ajeitado, com asfalto até a porta da propriedade. Coisa fina, informou Álvaro.
Fagundes abalou-se para Piracicaba no mesmo dia da conversa com o jornalista, certo de que se tratava de pista promissora. Hospedou-se num hotel barato no centro da cidade e em poucas horas localizou o sítio de Eustáquio. Difícil foi fazer o homem desembuchar palavra, todo cheio de evasivas, que não se lembrava de nada, nervoso, o suor escorrendo pela testa, que nunca vira a Taça, muito menos sabia quem a havia roubado, só sabia que tinha sido derretida. Fagundes não engoliu nada daquilo, ao contrário, pensou, Aí tem coisa! A casa de Eustáquio era de uma simplicidade franciscana, o que Fagundes interpretou como sinal de dissimulação. Não havia banheiro na casa, e sim uma latrina nos fundos do quintal, próximo à horta, Muito estranho, muito estranho, aí tem coisa, repetiu nosso Sherlock.
De volta à cidade, Fagundes comprou um par de botas de borracha de cano longo, macacão de plástico impermeável, luvas, boné para o disfarce e poderosa lanterna. À noite voltou ao sítio. Assustou-se com o latido dos cachorros mas não desistiu; aproximou-se cuidadosamente da casinha – era assim que, desde criança, chamava aquele tipo de latrina – abriu a porta de madeira velha e carcomida, examinou o cubículo com cuidado; nada encontrou. A ideia que lhe ocorreu em seguida foi de arrepiar, Ele escondeu no meio da merda! Depois de alguns minutos de hesitação, Fagundes tapou o nariz e entrou no monte de bosta, contendo a todo custo o inevitável vômito. Remexeu remexeu remexeu até que, às tantas animou-se, ao tocar um objeto estranho: não passava de um lampião velho, que Eustáquio provavelmente deixara cair na fossa, numa noite escura. Merda!, exclamou o detetive, admitindo que a palavra aplicava-se perfeitamente às circunstâncias.
Desvencilhou-se do macacão, luvas, botas, boné, tomou um longo banho quente no chuveiro do hotel, voltou de mãos abanando para o Rio de Janeiro, Eustáquio que vá à puta que o pariu!
Fagundes não desistiu, voltou a procurar o jornalista – sem fazer qualquer menção, é claro, ao episódio da latrina – em busca de nova pista. Álvaro conhecia também um tal de Pedrão, cearense que fazia a manutenção elétrica do prédio, sujeito ladino, escorregadio, de conversinha mole, nunca investigado pela polícia, que depois do roubo mudou-se para Campos, no Estado do Rio. Fagundes tornou a animar-se, Aí tem coisa!
À noite tomou o ônibus para Campos. Dessa vez não foi fácil localizar Pedrão. Depois de quinze dias descobriu que Pedrão mudara de profissão, agora era garçom; daí foi um pulo para que Fagundes o descobrisse trabalhando num restaurante popular, que servia comida a quilo, Aproveito e almoço logo nessa espelunca. A conversa entre os dois também não foi fácil; Pedrão tinha malícia, nada sabia sobre o roubo mas tentou tirar alguma vantagem da situação quando se deu conta da ideia fixa do detetive. Alegou que tinha uma pista quentíssima, mas que custaria algum dinheiro para ser revelada. Fagundes fê-lo baixar o preço, aceitou, e ouviu do eletricista-garçom que a Taça continuava no Rio, de posse de um colecionador fanático por futebol, um tal de Abrantes, residente no Leblon. Desconfiado, mesmo assim Fagundes pagou, ameaçando Pedrão de morte caso se tratasse de pista falsa. (Dias depois Pedrão voltou para o Ceará.) O nosso detetive ainda passou mais três dias em Campos, curando-se de uma caganeira dos diabos, provavelmente contraída no restaurante do Pedrão.
Dessa vez Fagundes não procurou Álvaro, iniciou sozinho a caçada ao colecionador, certo de que esta era a pista mais confiável que obtivera até o momento. Aí tem coisa!, repetia para si mesmo, entusiasmado como sempre.
Após três meses de idas e vindas ao Leblon, sem nunca ter aproveitado um dia sequer de sol e praia, ouviu falar de um certo Abrantes, residente no bairro, mas a notícia era vaga, incerta, o que não esmoreceu Fagundes.
Num lance de pura sorte, encontrou mais um Abrantes, agora eram dois a residir no Leblon, o que, na lógica de Fagundes, duplicava sua chance de encontrar a Jules Rimet. O primeiro Abrantes que localizou era um pobre porteiro de um prédio antigo, e que morava num minúsculo quartinho nos fundos do pavimento térreo. O detetive acabou por deixar algum trocado para o homem, condoído com a penúria em que vivia. A Taça não podia estar ali.
O segundo Abrantes era um homem de posses. Seu nome completo, José Eduardo Abrantes de Albuquerque. Aí tem coisa!, animou-se Fagundes, O homem tem pedigree, vê-se pelo nome. Mas não foi fácil chegar ao figurão, prédio cheio de seguranças, agenda ocupadíssima, inacessível este Abrantes, o que, naturalmente, reforçou a suspeita de Fagundes.
O detetive resolveu apostar na informação de Pedrão de que Abrantes, ou doutor José Eduardo, Melhor chamá-lo assim, era aficionado por futebol, e passando-se por jornalista, interessado numa entrevista para uma revista importante, conseguiu penetrar na fortaleza de José Eduardo, profissão banqueiro!  
José Eduardo era um homem vaidoso. Quando soube o nome da revista, prontificou-se não só a receber Fagundes como a mostrar-lhe sua vasta coleção de itens ligados ao futebol, camisas de jogadores famosos, incluindo várias do Pelé, chuteiras, bolas de copas do mundo, ingressos de todas as copas, fotos e vídeos dos jogos mais importantes, troféus de campeonatos disputados em todo o mundo, e quanto mais se exibia, mais o detetive lhe insuflava o ego, Só falta uma coisa para que o senhor seja o maior colecionador do mundo, O que é?, A Taça Jules Rimet.
Foi aí que Fagundes fisgou o homem, Não possuo a original, é claro, mas mandei fazer uma réplica idêntica, mostro-a para muito pouca gente, vou mostrá-la a você, mas nada de fotografia, está bem?, Combinado. José Eduardo vestiu um par de luvas de algodão, abriu um pequeno cofre de parede e retirou de lá a Taça, para estupefação de Fagundes, que percebeu logo tratar-se da original e verdadeira Jules Rimet, Posso pegá-la?, Vista primeiro estas luvas, e com a Taça na mão Fagundes não teve mais dúvida, havia encontrado o Santo Graal!
Esteve com ela nas mãos por alguns minutos, devolveu-a emocionado, disse que estava satisfeito com a entrevista, Vai ser uma ótima reportagem, muito obrigado, Eu é que agradeço, despediram-se. Não passou despercebida para o dono da casa a perturbação que se apoderou de Fagundes, ao ter a Taça na mão, por mais que desejasse disfarçá-la.
Fagundes precisava pensar. Foi para casa, um apartamento pequeno na Av. Nossa Senhora de Copacabana, fechou as cortinas para abafar o barulho da rua, apagou as luzes, sentou-se no velho sofá da sala, tão emocionado que não conseguia concatenar as ideias. Como não era um repórter, teve dificuldade para ordenar os fatos, passou a noite imaginando as manchetes dos principais jornais do Rio, não só do Rio, do Brasil, do mundo: Detetive carioca descobre paradeiro da Jules Rimet, Taça do tri não foi derretida, Brasil tem a Taça de volta, Detetive Fagundes desvenda o mistério da Jules Rimet.
Foi desta última que ele mais gostou, e imaginava o teor das reportagens, relatando a história das buscas (apenas ninguém ficaria sabendo da visita à latrina em Piracicaba), e ajudado pela ingestão de meia garrafa de uísque, Fagundes adormeceu profundamente, imerso em devaneios de fama e glória.
            Infelizmente não pôde ler a manchete dos jornais do dia seguinte:

Detetive encontrado morto em seu apartamento em Copacabana!

            Assassinato? Suicídio? Fagundes foi encontrado estendido no sofá da sala com um tiro na cabeça; a polícia pouco se interessou pelo caso, ocupada com crimes de maior repercussão social na cidade do Rio de Janeiro.

            

quarta-feira, 12 de março de 2014

50 minutos


O velho fazia sua caminhada diária quando um carro parou junto ao meio fio e pediu informação – supõe-se, pois não houve testemunhas. O caminhante levou dois tiros no peito e morreu instantaneamente.
Um advogado amigo da família e com vocação detetivesca interessou-se pelo caso, já que a polícia fez pouco ou nenhum progresso nas investigações durante os seis meses subsequentes. Aparentemente o velho não tinha inimigos. Nos últimos dez anos sua convivência social reduziu-se a duas ou três pessoas, incluindo a própria mulher, de um segundo casamento, com quem estava casado há vinte e poucos anos. As aventuras amorosas haviam se perdido no tempo. Ele não devia dinheiro a ninguém, aliás, não devia nada a ninguém. E não dispunha de seguro de vida.
O advogado amigo da família, residente no bairro da vítima, passou a fazer a mesma caminhada, repetindo o trajeto e horário, diariamente. Observador por natureza, mantinha-se atento aos homens e mulheres com quem cruzava, quase todos acima dos cinquenta anos, contava os carros que rodavam pela rua àquela hora da manhã, anotava marcas, modelos e cores dos veículos, de um ou outro registrava o número da placa. Fez isso durante seis meses.
Do mesmo modo que a polícia, não pôde chegar a pista alguma. As marcas de sangue deixadas pelo morto na calçada estavam quase que completamente apagadas. Ninguém mais comentava sobre o crime. A esposa do velho, alguns anos mais nova, havia se casado de novo. O advogado recebeu ótima proposta de emprego numa grande firma de advocacia e mudou-se para São Paulo.
Ao chegar em casa depois de 50 minutos de caminhada, esta foi a história que o velho deixou registrada em seu computador, ele que pretendia publicar um livro de contos sobre crimes sem solução. Morreu de infarto alguns minutos depois.