quarta-feira, 22 de abril de 2015

Idos de 1959: em busca de um tempo perdido




Noite de sábado, 3 de outubro de 1959. Pai e filho aguardam ansiosos pelo jogo que terá início em poucos minutos, e que será transmitido pela TV, em preto e branco, imagem ruim, escura, mas na cabeça do menino a camisa do Palmeiras é mais verde do que nunca.
O jogo será em Vila Belmiro, campo do Santos F.C.; o Palestra tem um grande time, mas o Santos tem Pelé. Com poucos minutos de jogo o Palmeiras abre o placar. A vibração do menino é enorme.
Logo em seguida o Santos empata, faz mais um, já está vencendo por 2 a 1, para desespero do menino. O resultado final é um catastrófico, inacreditável, inesquecível 7 a 3 para o Santos.
O menino, inconsolável, não pode compreender aquele placar. O Palmeiras não pode tomar 7 gols numa única partida, isso é impensável. Escondido no quarto, o menino chora em silêncio. De vergonha.
No returno, jogando em São Paulo, o Palmeiras goleia por 5 a 1, a mesma diferença de 4 gols do fatídico jogo em Santos. Isso serve de pouco consolo: a diferença é mesma, mas tomar 7 é demais.

* * *

O campeonato prossegue equilibradíssimo e termina com Palmeiras e Santos empatados em primeiro lugar. A decisão será em melhor de 4 pontos (ou seja, quem fizer 4 pontos será o campeão). O primeiro jogo, em 5 de janeiro de 1960, termina em 1 a 1. Dois dias depois, o segundo jogo, e novo empate: 2 a 2.
             A decisão fica para o dia 10 de janeiro,
 no Estádio do Pacaembu. Aos 3 min Pelé abre o placar. Aos 43 min ainda no primeiro tempo, Julinho Botelho empata o jogo. Romeiro, de falta, faz o segundo do Palmeiras aos 3min do segundo tempo.
Palmeiras Campeão!

Como houve 3 jogos para esta definição, o Palmeiras recebe o título de Supercampeão de 1959!
            As escalações de ambos os times:

PALMEIRAS:
Valdir; Djalma Santos, Valdemar Carabina e Geraldo: Zequinha e Aldemar; Julinho Botelho, Nardo, Américo, Chinesinho e Romeiro.
Técnico: Osvaldo Brandão.


SANTOS:
Laércio; Urubatão, Getúlio e Dalmo; Zito e Formiga; Dorval, Jair Rosa Pinto, Pagão, Pelé e Pepe.
Técnico: Lula.

* * *

            O relato acima permanecia vivíssimo para menino que ainda hoje habita em mim, até o momento do jogo em que o Palmeiras venceu por 5 a 1, e que não se constituiu num consolo. Ou seja, o resultado anterior de 7 a 3 foi tão traumático, que a memória do restante do campeonato foi bloqueada, a despeito do feliz desfecho, o supercampeonato! Deste, não tinha a menor recordação.
            Quando busquei na Internet os detalhes do 7 a 3, para escrever esta crônica, encontrei o desenrolar dos fatos aqui narrados, e minha memória foi completamente recuperada. A escalação do Palmeiras, lembrei-me dela quase que integralmente. Do Santos, lembrei-me de Zito, Formiga, Dorval, Jair, Pagão, Pelé e Pepe, grandes jogadores.
            Três conclusões importantes!
1)    Futebol é coisa séria.
2)    Trauma é trauma.
3)    Temos muito o que aprender sobre nossa própria memória, e portanto, sobre o que consideramos fatos e verdades indiscutíveis sobre nosso passado.

* * *
Freud escreveu dois artigos interessantíssimos sobre o tema: “O mecanismo psíquico do esquecimento” (1898) e “Lembranças encobridoras” (1899). No segundo artigo ele afirma:

“Ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao procurarmos averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada, ou um número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são frequentemente de importância duvidosa ou enigmática. É somente a partir do sexto ou sétimo ano — em muitos casos, só depois dos dez anos — que nossa vida pode ser reproduzida na memória como uma cadeia concatenada de eventos. Daí em diante, porém, há também uma relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na memória. O que quer que pareça importante por seus efeitos imediatos ou diretamente subsequentes é recordado; o que quer que seja julgado não essencial é esquecido. Quando consigo relembrar um acontecimento por muito tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória como uma prova de que ele causou em mim, na época, uma profunda impressão. Surpreendo-me ao esquecer uma coisa importante, e talvez me sinta ainda mais surpreso ao recordar alguma coisa aparentemente irrelevante.”

            Dois mecanismos psíquicos diferentes, porém análogos, estão em jogo. As “lembranças encobridoras” descritas por Freud têm com o objetivo obscurecer experiências perturbadoras, e que não podem vir à tona. O caso do menino palmeirense é bem o oposto. O trauma deixa sua marca, perturba a memória da “cadeia concatenada de eventos”, no dizer freudiano.

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A propósito, nos dois próximos fins-de-semana Palmeiras e Santos vão decidir o Campeonato Paulista de 2015! O menino haverá de torcer desesperadamente...