quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Diário da demenciação

 A consciência plena da perda contínua e inexorável das capacidades intelectuais é, em si mesma, um tormento a ser superado; mas como?           No princípio ainda há recursos mentais que permitem que se possa pensar sobre o processo já em andamento. A perda da memória para os fatos mais recentes se destaca, e começa a afetar os gestos banais do cotidiano. O sujeito sente sede, vai até a cozinha em busca da água, vê o vidro de biscoitos, não resiste, come um biscoito, volta para o quarto de tevê, e logo em seguida percebe que a sede persiste. 

A mulher reclama de qualquer coisa inadequada que ele fez, nada de grande importância, porém ele se aborrece. Como está de saída para o trabalho, ela diz Já estou indo, até logo, e ele retruca em voz alta, como se estivesse pensando e portanto ninguém mais ouvindo, Já vai tarde. Ela ouve, compreensiva, releva. Ele pensa sobre a própria atitude com autocrítica, acha-a engraçada, infantil, uma espécie de retorno à infância.

À medida em que a perda se acentua, naturalmente fica mais difícil a autocrítica. O que há pela frente? O medo, suponho, deve ser sentimento preponderante, e não se sabe bem até mesmo a razão do medo. Medo de quê?  Simplesmente medo, talvez porque o sentido das coisas está se esfarelando, nada mais faz sentido, e a vida passa a se manifestar através de fragmentos. É o homem em frangalhos.

Começa a ficar difícil manter juntos os fragmentos, unidos em torno de um Eu. Os fragmentos vão se perdendo pelo caminho entre o quarto de tevê e a cozinha: nem água nem biscoito. Melhor não olhar no espelho para não ter de perguntar, Quem é esse aí? qual sua história de vida? onde nasceu? como se chama? teve pai? teve mãe? mas todo mundo não teve pai e mãe algum dia? São perguntas que atordoam, atormentam, cansativas, exaustivas, para as quais não há resposta. Com a dispersão dos fragmentos se acentua o não reconhecimento do próprio Eu.

A Música que ele tanto amava transforma-se em barulho que atordoa. Ele tapa as orelhas com as mãos e o barulho persiste persegue importuna. Estará alucinando?

Ler um livro, nem pensar. Muito difícil juntar B com A em beabá. A infância novamente. Que sentido têm as palavras? Sem tido. Sem... nada.

As imagens de um quadro há muito apreciado agora se embaralham, Onde vai dar essa estrada? árvores? um cavalo? que confusão? Ele prefere não olhar. Ou que a tela esteja em branco. Talvez por isso ele passe horas diante da tela em branco do computador. 

Já é impossível pensar. 

Mesa carro vela acesa fumaça feijão, O cão que lambe a minha mão, esse cão me reconhece, que cão é esse? por acaso ele tem dono?

Mais uma vela que se apaga: ela se diz minha filha, Mas algum dia tive filha?

O pior está por vir. Enfiaram-me um tubo pelo nariz e, dizem, me alimentam por ele. Como? Não como, não sinto gosto de nada. Ainda me lembro, gostava tanto de empadinha de frango! Agora enfiam-me a empadinha pelo tubo e não sinto gosto de nada. A vida perdeu o gosto.

Para quê viver? Arranco o tubo, não quero essa empadinha insípida, desejo morrer, apenas, simplesmente, definitivamente. Mas isso não pode ser aceito por quem cuida de mim.

Perdi minha autonomia, vivo sob cuidados de gente que decide por mim, que devo comer empadinha de frango sem gosto e pronto, porque é preciso continuar vivendo.

 

 

3 de fevereiro

 

Ainda, às vezes, busco algum sentido. Sem tido? Sem.

 

 

15 de junho

 

Quem?

 

 

12 de dezembro

 

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Casa velha



Depois de abandonar no meio do caminho dois livros enfadonhos de autor conceituado porque entrado nos anos não posso me dar ao luxo de ler livros enfadonhos e preciso viver com alegria para saborear a alegria de viver, agora adentro a Casa Velha do velho Machado, conto extraordinário interessantíssimo provocador surpreendente porque trata de gente, do amor, de costumes antigos que nos ajudam a compreender costumes de hoje, Machado mais vivo do que nunca, na boca de um velho cônego da Capela Imperial.

         Eis a descrição da casa:

 

“A casa cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que iam ali ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados.”

 

         (Comparo-a com minha casa: minha casa não é vasta nem sólida, carcomida por um tipo maligno de cupim, mas é igualmente nua de adornos, sempre foi, e ao ser construída já trazia defeito que precisei carregar por toda vida, nada que incomode na velhice, mas que na infância era motivo de bullying constante – zarolho caolho vesgo...)

         As coisas que se sucederam na Casa Velha espelham antes de tudo o vasto preconceito racial reinante na época, hoje denominado estrutural. (Interessante como de repente surge uma palavra para descrever fenômeno antigo.) O próprio cônego narrador tinha o “seu preto”. Porém Machado descreve principalmente o preconceito social, razão da grande mentira da matriarca dona da Casa.

         A história é boa, mas bom mesmo é o estilo machadiano. Os personagens são descritos com precisão e arte; vejamos como o autor define a matriarca:

 

“A casa fora construída pelo avô, em 1780, voltando da Europa, donde trouxe ideias de solar e costumes fidalgos; foi ele, e parece que também a filha, mãe de d. Antônia, quem deu a esta a pontazinha de orgulho, que se lhe podia notar, e quebrava a unidade da índole desta senhora, essencialmente chã.”

 

         Essencialmente chã: isso é que é arrasar com classe o caráter de alguém! Trazer ideias de solar e costumes fidalgos também constituem construções elegantíssimas, finas e originais.  

         Ninguém escreve como Machado de Assis, o Mago do Cosme Velho. Conto longo ou pequeno romance, que importa! Casa Velha é um grande livro.