quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Bicho

“O bicho é o homem que nós não somos.”

 

 

                        Nélida Piñon
                        Um dia chegarei a Sagres, Record 2020



Água funda, prosa poética


“A gente passa nessa vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.”

 

 

                        Ruth Guimarães

          Água Funda, Editora 34, 2020.

Conto de Natal 2020


Bem antes da diáspora, o pai reuniu a família, fez a proposta, Natal está chegando, vamos fazer um concurso para ver quem escreve o Conto de Natal mais bonito, o vencedor ganhará um prêmio!

            A recepção ao belo e inocente desafio foi a mais gelada possível, como se o Natal estivesse sendo comemorado na Sibéria. Nem um a palavra, nem sim nem não, o pai insistiu mais um pouco, estabeleceu a data limite para que os textos fossem entregues, o assunto morreu ali. Ninguém escreveu nada.

            Desde então, em alguns natais, seja por sentimento de culpa, seja apenas pela simples vontade de escrever, ensaio um Conto de Natal: às vezes vinga, outras não. Assim sendo, aqui estou eu, neste final do fatídico ano de 2020, em completo isolamento social, pensando em algo para comemorar.

            Tenho a comemorar tão somente – e isso é tudo! – o fato de estar vivo, prestes a completar 74 anos. Os que creem, agradecem ao seu deus. Os que não creem, devem agradecer a quem?

            Penso que os que não creem devem agradecer pela experiência fantástica de viver, na maioria das vezes dolorosa, triste, desafiadora, repleta de armadilhas, de imprevistos, alguns funestos em demasia, porém fantástica pelo contraponto, pelos momentos de alegria inebriante, o nascimento de um filho, o amor pela companheira, a amizade dos cães, poder molhar os pés na água do mar. 

A depender da resiliência de cada um, a experiência de viver só se compara a um grande romance, que tem início há muitas gerações que nunca chegamos a conhecer, e que se desenrola por a nos a fio, com nascimentos e mortes, prolongando-se no tempo até onde nunca saberemos. É o “romance familiar”, que nos envolve a todos, nos afeta profundamente, nos molda para a vida, modifica nosso modo de ser – o que nem sempre percebemos. 

            Se temos a comemorar a experiência de viver, quê mais precisamos comemorar? Nesse 2020, fiquemos em casa. De minha parte, só posso mesmo escrever uma pobre crônica e desejar a todos um feliz Natal.