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segunda-feira, 16 de maio de 2022

A arte de Aurora Cursino

Pintura sem título e sem data de Aurora Cursino

Coleção: Museu de Arte Osório Cesar. Cortesia: 

Complexo Hospitalar do Juquery 

e Prefeitura de Franco da Rocha.

Foto: Gisele Ottoboni/ Prefeitura de Franco da Rocha.

 

 

Publicação a ser lançada na próxima quarta-feira, Dia da Luta Antimanicomial: biografia "Aurora: Memórias e Delírios de Uma Mulher da Vida", de autoria da historiadora Silvana Jeha e do psicanalista Joel Birman. 

“A dupla reconstrói a vida dessa anti-heroína com base em documentos de diversos arquivos, notícias de jornal e nos próprios escritos da artista, intercalando o texto com pinturas dela e sugerindo conexões dos quadros com fatos da vida de Cursino.” 

"Puta, louca e finalmente artista, ela condensa em sua obra algo que diz respeito a todas as mulheres", escrevem os autores na introdução do livro. "Sobretudo, o que ela pinta é o patriarcado. Os quadros dela são basicamente um ataque do patriarcado à mulher. Se alguém desenhou para mim o que é o patriarcado, foi a Aurora", afirma Jeha, em entrevista. A autora acrescenta que muitos temas tratados nos quadros da artista viriam a aparecer décadas mais tarde na arte feminista, engajada.”

“Cursino aprendeu a pintar na Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, onde a pintora Maria Leontina deu aulas durante alguns anos. Suas telas a óleo misturavam personagens das ruas do Rio de Janeiro, autoridades do governo e representações de si mesma e dos filhos que teria tido com escritos que davam dicas sobre as situações retratadas. Suas frases não eram muito claras e ela tratava a palavra como imagem, afirma Raphael Fonseca, um dos organizadores da exposição "Raio que o Parta", em cartaz agora em São Paulo, no Sesc 24 de Maio.”

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/05/quem-foi-aurora-cursino-artista-lobotomizada-que-pintou-a-submissao-feminina.shtml

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Florence Price

 

 

Florence Beatrice Price foi uma compositora de música clássica norte-americana, a primeira mulher negra reconhecida como compositora sinfônica. 

“Florence nasceu em Little Rock, em 1887, filha de Florence Gulliver e James H. Smith, uma das três filhas de um casal inter-racial. Apesar de esta ser uma época de preconceito e opressão, a família era valorizada e respeitada em sua comunidade. Seu pai era dentista e sua mãe era professora de música, que acabou passando para a filha Florence o gosto pela música e as primeiras aulas. Sua primeira apresentação no piano foi aos 4 anos de idade e sua primeira composição clássica foi aos 11 anos. 

Aos 14 anos, Florence se formou na escola como a primeira da classe se matriculou no Conservatório da Nova Inglaterra, graduando-se em piano e órgão. Em seus tempos de estudante compôs seu primeiro trio e uma sinfonia. Formou-se com honras em 1906, tanto nos instrumentos quanto no magistério. 

Em Atlanta, tornou-se chefe do departamento de música da Universidade Clark Atlanta. Em 1912, casou-se com o advogado Thomas J. Price e se mudaram de volta para Little Rock. Após uma série de incidentes racistas na cidade, até mesmo um linchamento em 1927, a família se mudou para Chicago, onde Florence passou a se dedicar integralmente à carreira de compositora. 

Dificuldades financeiras levaram o casal ao divórcio em 1931, quando Florence se tornou mãe solteira de duas filhas. Para manter a família, ela trabalhou como organista em abertura de filmes mudos e compôs músicas para propagandas de rádio com um pseudônimo. Acabou se mudando para a casa de uma amiga e estudante, Margaret Bonds, pianista e compositora negra. A amizade com Margaret a fez entrar em contato com o escritor Langston Hughes e com a contralto Marian Anderson, duas figuras proeminentes no mundo artístico, que ajudaram a alçar o nome de Florence no meio da música. Junto de Margaret, Florence conseguiu reconhecimento nacional por suas composições e performances. 

Em 1932, as duas submeteram composição para o Prêmio da Fundação Wanamaker, onde Florence ganhou o primeiro prêmio com sua Sinfonia em Mi Menor e o terceiro prêmio com sua sonata para piano, que lhe rendeu 500 dólares na premiação. A Orquestra Sinfônica de Chicago tocou a sinfonia ganhadora de Florence em 1933, tornando-a a primeira negra a ter uma peça tocada por uma orquestra sinfônica. 

Seu trabalho era variado, com sinfonias, música de câmara, consertos para piano e violino, e arranjos para órgão. Alguns de seus trabalhos mais populares são "Three Little Negro Dances," "Songs to a Dark Virgin", "My Soul's Been Anchored in de Lord" e "Moon Bridge". Muitas de suas obras eram marcadas pelos ritmos e melodias das músicas negras. 

Apesar de ter recebido uma educação quase que inteiramente centrada na tradição europeia, a música de Florence adotava o inglês e trazia as raízes do sul dos Estados Unidos na melodia. Compunha com um estilo vernacular, usando sons e ideias que serviam à realidade da moderna sociedade urbana. Sendo bastante religiosa, frequentemente usava as músicas das igrejas negras como material para seus arranjos. Suas melodias eram inspiradas na técnica romântica europeia tradicional, mesclada com tons de blues e jazz. 

Florence faleceu em 3 de junho de 1953, devido a um acidente vascular cerebral. Após sua morte, muitos de seus trabalhos caíram no esquecimento e apenas recentemente foram redescobertos pela comunidade da música. Alguns de seus trabalhos se perderam, mas assim como muitas intérpretes negras estão ganhando notoriedade, também seu trabalho tem sido reconhecido. Em 2001, a Filarmônica das Mulheres gravou um álbum apenas com seus trabalhos.”

 

A Sinfonia n. 1 em mi menor está disponível no YouTube, bem como outras gravações da compositora: https://www.youtube.com/watch?v=9s4yY_A2A2k

 

 


https://pt.wikipedia.org/wiki/Florence_Price

 

domingo, 16 de janeiro de 2022

Autobiografia 3

100 anos de José Saramago



“Também por essas alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou.

Quando casei, em 1944, já tinha mudado de actividade, passara a trabalhar num organismo de Segurança Social como empregado administrativo. Minha mulher, Ilda Reis, então dactilógrafa nos Caminhos de Ferro, viria a ser, muitos anos mais tarde, um dos mais importantes gravadores portugueses. Faleceria em 1998. Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante, publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escrevi ainda outro romance, Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e principiei um outro, que não passou das primeiras páginas: chamar-se-ia O Mel e o Fel ou talvez Luís, filho de Tadeu… A questão ficou resolvida quando abandonei o projecto: começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas Possíveis , estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.”


            José Saramago

 

https://www.josesaramago.org/biografia/

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Correspondência de Machado de Assis



 

“Rio de Janeiro, 2 de março de 1869.

 

Minha querida Carolina,

 

            Recebi ontem duas cartas tuas, depois de dois dias de espera. Calcula o prazer que tive, como as li, reli e beijei! A minha tristeza converteu-se em súbita alegria. Eu estava tão aflito por ter notícias tuas que saí do Diário à 1 hora para ir a casa, e com efeito encontrei as duas cartas, uma das quais devera ter vindo antes, mas que, sem dúvida, por causa do correio foi demorada. Também ontem deves ter recebido duas cartas minhas; uma delas, a que foi escrita no sábado, levei-a no domingo às 8 horas ao correio, sem lembrar-me (perdoa-me!) que ao domingo a barca sai às 6 horas da manhã. Às quatro horas levei a outra carta e ambas devem ter seguido ontem na barca das duas horas da tarde. Deste modo, não fui eu só quem sofreu com demora de cartas. Calculo a tua aflição pela minha, e estou que será a última.

            Eu já tinha ouvido cá que o Miguel alugara a casa das Laranjeiras...”

 

Este fragmento de carta, endereçada à Sta. Carolina Xavier de Novais, por Machado de Assis, encontra-se no quinto volume de Machado de Assis – Correspondência, em cinco volumes, editada pela Global Ed. e pela Academia Brasileira de Letras, 2ª edição, 2019. A coordenação da obra é de Sergio Paulo Rouanet, com organização e comentários de Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. 

O projeto que resulta nesta publicação é monumental, com mais de sete anos de trabalho minuciosíssimo, cada texto repleto de notas explicativas que nos remetem a diferentes lugares, pessoas, acontecimentos, circunstâncias. Quem tiver paciência e gostar desse tipo de literatura – sim, porque se trata mesmo de Literatura – há de apreciar a leitura como se lesse um romance, recheado de história, costumes, a fala de uma época, e, mais que tudo, a biografia do nosso maior escritor, Machado de Assis.

No prefácio desse quinto volume (correspondência de 1905 a 1908), Marco Lucchesi, presidente da ABL, chama nossa atenção para dois aspectos fundamentais: a personalidade de Machado e sua época: 

 

“Cada um de nós traz uma ideia de Machado. Ideia vaga, talvez, difusa, mas eminentemente sua, apaixonada e intransferível. Como se guardássemos um fino véu a se estender sobre a cidade do Rio de Janeiro.

            Paisagem pela qual vamos fascinados e diante de cuja natureza suspiramos. Todo um rosário de ruas e de igrejas – Mata-Cavalos, Santa Luzia, Latoeiros e Candelária. Nomes-guias e sonoridades perdidas.  Morros derrubados. Praias ausentes. Tudo o que perdemos move-se ainda nas páginas de uma cidade-livro.”

 

              A leitura dessa Correspondência há de apurar a ideia que fazemos do homem Machado. Voltemos à carta acima, endereçada a Carolina. Espantou-me o longo primeiro parágrafo! É evidente a aflição do homem apaixonado; ainda não sei se essa emoção é a responsável pela prolixidade e repetição do mesmo tema – a demora das cartas! – ou se Machado era mesmo assim, meio confuso. Não é o que deixa transparecer a obra dele, porém, uma carta íntima revela coisas que um romance, conto ou poema do autor jamais mostrariam.

            As duas cartas que Machado recebe da amada se misturam com as duas que ele escreve; a demora dos correios traz aflição desmedida; ele troca o dia da semana e se confunde com o funcionamento das barcas, e pede desculpas!; parece obcecado com os horários; mistura sua aflição com a que pressupõe de Carolina; o sofrimento é de ambos os dois; é tamanha a agonia que engole uma palavra ao final do parágrafo (“Calculo a tua aflição pela minha, e estou que será a última”); ele está certo de que “será a última”?

            Curioso mesmo é que, após o parágrafo concentrado no tema das cartas e na aflição dos enamorados, logo em seguida o assunto muda de forma radical, súbita, e Machado volta à Terra, ao mundano cotidiano, e cita Miguel (irmão de Carolina, informa a nota) e o aluguel da casa em Laranjeiras, bairro agradabilíssimo do Rio de Janeiro, suponho até os dias atuais, onde morei por alguns anos em companhia de minha família. 

            Que Machado é este que o parágrafo de uma carta deixa transparecer? Sei apenas que o leitor se deleita!

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Luz em tempos sombrios


 

“Mesmo nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação possa provir menos de teorias e conceitos e mais da luz incerta, tremeluzente e muitas vezes fraca que, em suas vidas e obras, alguns homens e mulheres acendem em quase todas as circunstâncias e irradiam pelo tempo que lhes foi dado na Terra.”

 

                        Hannah Arendt

 

Em Homens em tempos sombrios (1968), “Hannah escreve sobre as raras pessoas que, graças a sua luminosidade, seu intelecto e sua originalidade, são capazes de espalhar esperança e luz mesmo em tempos sombrios.”

Ambos os trechos citados fazem parte da biografia de Hannah Arendt escrita por Ann Heberlein, intitulada Arendt – entre o amor e o mal: uma biografia, recentemente publicada pela Companhia das Letras (2021).

Como estamos precisados de pessoas que irradiem luminosidade, de intelecto privilegiado, nesses tempos sombrios que vivemos no Brasil!

 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Por quê gosto de Rothko?






Mark Rothko nasceu em Dunaburgo (1903) e morreu em Nova Iorque (1970);  é considerado um dos mais famosos pintores americanos do período pós-guerra, de origem letã e judaica, classificado como um expressionista abstratoImigrou com sua família da Letónia para os Estados Unidos em 1913, quando ele tinha dez anos. 

Fez seus estudos no Lincoln High School de Portland, depois na Universidade Yale. Em 1929, tornou-se professor de desenho para crianças.

“De acordo com seus amigos, tinha uma natureza difícil. Profundamente ansioso e irascível, podia ser também extremamente afetuoso. É na década de 1950 que sua carreira verdadeiramente se destaca, graças sobretudo ao colecionador Duncan Philips que lhe comprou vários quadros e, após uma longa viagem do pintor à Europa, consagrou uma sala inteira à sua coleção (um sonho de Rothko, que desejava que os visitantes não fossem perturbados por outras obras).

Rothko era um intelectual, um homem extremamente culto que amava a música e a literatura e era muito interessado pela filosofia, em particular pelos escritos de Nietzsche e pela mitologia grega. Influenciado pela obra de Henri Matisse – a quem ele homenageou em uma de suas telas – Rothko ocupou um lugar singular na Escola de Nova York.

Após ter experimentado o expressionismo abstrato e o surrealismo, ele desenvolveu, no final dos anos 1940, uma nova forma de pintar. Hostil ao expressionismo da Action Painting, Mark Rothko (assim como Barnett Newman e Clyfford Still) inventa uma forma meditativa de pintar, que o crítico Clement Greenberg definiu como Colorfield Painting ("pintura do campo de cor"). Em suas telas, ele se exprime exclusivamente por meio da cor em tons indecisos, em superfícies moventes, às vezes monocromáticas e às vezes compostas por partes diversamente coloridas. Ele atinge assim uma dimensão espiritual particularmente sensível.”

“Um livro crucial para Rothko foi O nascimento da tragédia de Friedrich Nietzsche. A nova visão de Rothko tentava dirigir-se às exigências da espiritualidade do homem moderno e às exigências criativas mitológicas, como Nietzsche, clamando que a tragédia grega é uma tentativa humana de compensar os terrores de uma vida mortal. Os objetivos artísticos modernos deixam de ser importantes para Rothko e sua arte terá como finalidade, aliviar o vazio espiritual fundamental do homem moderno; um vazio criado pela ausência de uma mitologia voltada corretamente "ao crescimento de um espírito infantil e (…) para a vida e as lutas de um homem" e para fornecer o reconhecimento estético necessário à liberação das energias inconscientes, precedentemente liberadas pelas imagens, símbolos e rituais mitológicos.

        Rothko se considerava como um "fazedor de mitos". "A experiência trágica fortificante", escreveu ele, "é para mim a única fonte de arte".

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mark_Rothko

 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Ana Cora Coralina: Pequena Biografia

 


Aninha nasceu em 1889, Cora 14 anos depois. Faziam parte da mesma pessoa, Ana Lins dos Guimarães Peixoto.

Aninha já entrou na vida subtraída do pai e da caçulice. Os poucos anos de estudo e o pior lugar entre as mulheres da família na decadente casa velha da ponte foram suficientes para enriquecer sua infância e forjar sua vontade. 

Adolesceu na Fazenda Paraíso entre árvores, rio e bichos. Da paixão pela terra surge a primeira necessidade de contar o que vê. Ali nasce a escritora Cora Coralina.

Os primeiros escritos são publicados em jornais e revistas. A amarela moça feia brilhava nos recitais de encontros literários. Lá decidiu se encantar pelo ciúme de Cantídio Bretas, advogado paulista bem formado, mal separado e vinte dois anos mais velho.

O namoro curto, a gravidez gemelar e o passado suspeito do noivo não cabiam na pequena cidade de Goiás. Ana, Cora, a barriga e Cantídio ganham o mundo cavalgando um corcel negro.

Em Jaboticabal a moça perdeu dois filhos, criou quatro, plantou árvores, participou de jornais e construiu um asilo. Em 1927 Ana deixou a cidade e o nome de Cora na estação de trem. 

Mudou-se para a capital para melhorar os estudos dos filhos, mas a morte decide lhe tirar o marido e o sustento. Ana descobriu a força do seu trabalho e decidiu não se cansar.

Em Penápolis, abriu a loja de tecidos Borboleta, organizou a associação dos comerciários e entrou para Ordem Terceira de São Francisco. Aos cinquenta anos, Ana decidiu não ter medo. 

Ainda inquieta, viu boa chance na área de ocupação pioneira de Andradina. A mulher terra se reencontrou com a natureza no Sítio da D. Cora, o mais respeitado pouso de boiadas da região. 

Aos sessenta e seis anos, Ana é chamada a testamentar sua herança em Goiás. Resistiu o quanto pode, desconfiou do risco. O chamado era maior. Deixou filho, filhas, genros, netos e bisnetos prontos. Foi só e não voltou.

“Vestida de cabelos brancos” caminhou pelas ruas de pedra, molhou os pés nas águas ensaboadas do Rio Vermelho, atravessou a Ponte da Lapa, entrou na velha casa da infância, encontrou Aninha dormindo e Cora desperta, lhe esperando. 

Vendeu doces, escreveu livros, ganhou prêmios e comprou a sua herança. A moça feia da casa da Ponte da Lapa criou uma velha linda e corajosa.

As palavras de Cora Coralina falam do que viveu, não conseguem inventar. Elas têm a força do olhar atento e faminto de quem amou existir e a doçura simples dos que sabem servir. Testemunham os interiores de um país gigante e de uma alma ainda maior.

 

Moisés Lobo Furtado         30/07/2020

domingo, 1 de março de 2020

Jun'ichiro Tanizaki





"Jun'ichirō Tanizaki (1886 - 1965) é considerado um dos maiores autores da literatura japonesa moderna. Sofreu influência de Allan Edgar Poe, participou da escola denominada A Tanbiha, que “valorizava a “arte e beleza acima de tudo”, contra o objetivismo da época.”
“Membro de uma família de mercadores, Jun'ichirō Tanizaki nasceu em Tóquio. Em sua juventude foi um admirador do mundo ocidental e das conquistas da modernidade, tendo vivido por um curto período em uma casa de estilo ocidental em Yokohama, subúrbio de Tóquio e lar de estrangeiros expatriados. Lá levou um estilo de vida boêmio. Em 1923, um forte terremoto e consequente destruição da sua casa, forçaram Tanizaki a se mudar para Ashiya, na região de Kyoto e Osaka, fornecendo cenários ao seu romance As irmãs Makioka.” 
“O centro dos seus interesses é a preservação da língua e da cultura tradicional do Japão. Tanizaki faleceu aos 79 anos, em 1965, um ano após ter sido o primeiro autor japonês eleito membro honorário da American Academy and Institute of Arts and Letters.”
Principais obras: Amor insensato (1924; Companhia das Letras, 2004), Voragem (1928; idem, 2001), Há quem prefira urtigas (1930; idem, 2003), A chave (1956; idem, 2000) e Diário de um velho louco (Estação Liberdade, 2002), Elogio da Sombra. Tanizaki traduziu para o japonês autores ocidentais, como Stendhal e Oscar Wilde.
“Após a Segunda Guerra Mundial Tanizaki alcançou proeminência literária, obteve muitos prêmios e até sua morte foi considerado o maior autor vivo de seu país. A maioria de seus livros é altamente sensual, alguns centrados no erotismo. Em praticamente todos eles se destacam a agudeza de sua percepção e uma sofisticação irônica. Muito embora seja lembrado por suas novelas e contos, Tanizaki também escreveu poesia, drama e ensaio. Ele foi, acima de tudo, um magistral contador de histórias.”



Esta longa introdução se justifica em função da minha incurável ignorância, pois nunca ouvira falar do autor. Há poucos dias encontrei obra dele numa livraria, li a primeira página, gostei muito, não larguei mais o livrinho até que chegasse à última linha. Um primor de literatura! São duas novelas: A ponte flutuante dos sonhos seguido de Retrato de Shunkin, tradução do japonês de Andrei Cunha, Ariel Oliveira e Lídia Ivasa (Estação Liberdade, 2019).
Assim tem início A ponte flutuante dos sonhos:

“Veio hoje
O cuco cantar
na Toca da Garça-Cinzenta:
fim da travessia
da Ponte flutuante dos sonhos.”

“A epígrafe dessa história é uma composição de minha mãe. No entanto, o problema é que tive duas mães – uma de nascimento, outra que veio depois – e, ainda que a mais provável autora do poema seja a mãe de sangue, jamais terei certeza disso. Acredito que os motivos de minha dúvida se tornarão claros ao longo da leitura, mas posso desde já adiantar um deles: as duas mulheres eram conhecidas pelo nome de Chinu.”

A leitura segue amena, inocente, quase pueril às vezes, mas a história vai se adensando até surgirem erotismo e luxúria, sem que o autor nunca perca a elegância no exprimir-se. 
Surpreendente o texto de Jun’ichiro Tanizaki!



sábado, 9 de novembro de 2019

Homem vitruviano

“O Homem vitruviano de Leonardo é a materialização de um momento em que a arte e a ciência se combinam para permitir que a mente de um mortal pudesse abordar questões atemporais sobre quem somos e como nos encaixamos na grande ordem do universo. Também simboliza um ideal do humanismo que celebra a dignidade, o valor e o agente racional dos seres humanos como indivíduos. Dentro do quadrado e do círculo, podemos ver a essência de Leonardo da Vinci, e também a nossa própria, desnuda e de pé sobre a interseção entre o mundano e o cósmico.”

                                                     Walter Isaacson (Intrínseca, 1917)





            O capítulo Homem vitruviano, na biografia de Isaacson, descreve pormenorizadamente a origem desta ideia, a partir de Marcos Vitrúvio Polião, nascido por volta do ano 80 a.C., autor do único livro sobre arquitetura da Antiguidade Clássica, intitulado De Architectura
            Abaixo do desenho, Leonardo escreveu:

“Se você abrir as pernas o suficiente para que sua cabeça seja rebaixada em um quatorze avos de sua altura e levantar os braços até que seus dedos toquem a linha que passa pelo topo da cabeça, saiba que o centro dos membros estendidos será o umbigo, e o espaço entre as pernas formará um triângulo equilátero.”           

            Quando o curador da Gallerie dell`Accademia, em Veneza, permitiu que o biógrafo Walter Isaacson tivesse acesso ao desenho original, a experiência emocional descrita por ele é muito semelhante a nossa, quando estamos frente a frente com a obra, mesmo que esta esteja atrás de um vidro. Eis a descrição dele: “...fiquei chocado pelos entalhes feitos pela ponta metálica de Leonardo e pelos doze furos deixados pela ponta do compasso. Experimentei a sensação íntima e estranha de presenciar a mão do mestre em ação mais de cinco séculos atrás.”
            O que experimentei ao ver o desenho, mesmo atrás de um vidro, foi muito mais que “a sensação íntima e estranha”. A experiência foi íntima, não poderia ser de outra forma; uma certa sensação de estranhamento também ocorreu, admito, e ainda não tenho explicação para ela; porém, o que prevaleceu foi a emoção oceânica de poder ver, olhar, reparar em uma obra de arte inigualável, realizada – porque foi uma verdadeira realização – pelo gênio de Leonardo, bem ali na minha frente, 500 anos depois de criada. 
Continuo a procurar as melhores palavras para exprimir tais sentimentos e não as encontro. Emoção emoção emoção.

Um pequeno caderno


Assinala Walter Isaacson, em sua magistral biografia Leonardo da Vinci (Intrínseca, 2017), em capítulo especial sobre Os cadernos de Leonardo:

“Por ser descendente de uma longa linhagem de tabeliães, Leonardo d Vinci tinha talento inato para manter registros. Rascunhar observações, listas, ideias e desenhos foi algo que aflorou naturalmente. No começo da década de 1480, pouco depois de sua chegada a Milão, ele deu início a uma prática que o acompanharia pelo resto da vida: a de fazer registros com regularidade. Alguns dos cadernos começaram como folhas soltas do tamanho de um jornal em formato tabloide. Outros eram pequenos livretos encapados em couro ou papel velino feito um livro de bolso ou até menores, que ele levava consigo para tomar notas.”

            A respeito das mil e uma utilidades de tais cadernos, é o próprio Leonardo quem fala, segundo Isaacson:

“Um dos propósitos dos cadernos era o de registrar cenas interessantes, sobretudo aquelas envolvendo pessoas e emoções. “Conforme você andar pela cidade”, escreveu em um deles, “observe constantemente, faça anotações e analise as circunstâncias e o comportamento dos homens enquanto eles falam e discutem, ou riem, ou partem para as vias de fato”. Com isso em mente, Leonardo levava um caderninho pendurado no cinto.”








            Passados 500 anos, poder ver, olhar e reparar em um desses preciosos caderninhos – que viviam pendurados no cinto do homem – não é pouca coisa. Saber que ele não se interessava apenas por arte e ciência, mas também pelo comportamento das pessoas, isso engrandece ainda mais nossa admiração pelo gênio. Emociona como o diabo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Arthur Bispo do Rosário sempre



Manto da Apresentação


O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou nesta quarta-feira o acervo de Arthur Bispo do Rosário. São 805 peças, estandartes, indumentárias, vitrines, fichários, móveis, objetos  elaborados em diversos materiais, como vidro, madeira, plástico, tecidos, linhas, botões, gesso, muitos recolhidos do lixo e da sucata.
A reportagem é de Paula Autran, Gilberto Porcidonio e Nelson Gobbi (19/09/2018) para O Globo. 
O tombamento inclui a cela em que Bispo do Rosário viveu e que mantém as suas intervenções. 
“O sergipano Arthur Bispo do Rosário Paes era natural de Japaratuba, no interior do estado, onde nasceu em 1909. Foi marinheiro e boxeador de 1926 a 1932, e empregado doméstico no bairro de Botafogo no fim da década de 30. De acordo com os registros, ele teve seu primeiro surto de esquizofrenia em 1938, quando peregrinou por igrejas do Centro se dizendo um messias. Foi fichado e preso pela polícia, tendo sido conduzido, primeiramente, ao antigo Hospício Pedro II, na Praia Vermelha. Após um mês, foi conduzido à Colônia Juliano Moreira, lugar que se confunde com a sua arte, onde permaneceu por mais de 50 anos como o "paciente 01662", até sua morte, em 1989.”
Foi neste período que ele começou a produzir suas peças, como mantos, bordados e tiras de tecidos pasteis em que escrevia frases, poemas e manifestos, tudo feito com o que encontrava no lixo e na sucata do complexo manicomial.
"Qual a cor da minha aura?" era a pergunta que dirigia aos visitantes das celas de que tomava conta e onde guardava suas obras. Um dos destaques é o Manto da Apresentação, peça bordada que ele dizia ser a sua vestimenta para o Juízo Final. 
Hoje, Bispo do Rosário é considerado um dos maiores expoentes da arte contemporânea brasileira e mundial. Após sua morte, teve sua primeira exposição individual, no Parque Lage, e peças expostas em São Paulo, Veneza, Lyon e no Victoria and Albert Museum, em Londres, entre outras cidades. 


terça-feira, 26 de junho de 2018

110 anos de Guimarães Rosa

Em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras em 16 de novembro de 1967, João Guimarães Rosa começou descrevendo, com a maestria própria, sua terra natal:

“Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas.”

Três dias depois de ser empossado na Academia Brasileira de Letras, João Guimarães Rosa teve um ataque cardíaco e morreu. Ele havia sido indicado para o prêmio Nobel de Literatura.
Amanhã, dia 27 de junho, são comemorados 110 anos de seu nascimento. 


Capela São José, patrimônio da cidade
Foto: Atílio Avancini

O artigo de Leila Kiyomura (22 jun 2018) para o Jornal da USP, trata do acervo de Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que foi adquirido em 1972, cinco anos depois de sua morte. É a principal fonte para quem pesquisa o autor.”
Afirma Kiyomura: “É a essência do mundo mágico e do sertão de João Guimarães Rosa que os estudantes, professores e pesquisadores encontram no acervo do escritor no IEB. “Esse acervo é composto da biblioteca, com cerca de 3.500 volumes, com uma variedade ampla de assuntos, e há também o arquivo documental, com os seus cadernos de anotações, livros inacabados, fotos e uma infinidade de documentos”, conta a professora Sandra Guardini Vasconcelos, professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.” 
A professora fala sobre o escritor, sua obra e o acervo adquirido pela USP: “Guimarães Rosa começa sua carreira literária em 1946, com o livro de contos Sagarana, que foi muito elogiado pela crítica. Dez anos depois, lança duas obras monumentais: Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. E se torna um escritor reconhecido, definitivamente incorporado na grande galeria dos escritores brasileiros.”


Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Escreve Kiyomura: “Emociona ver as primeiras páginas do diário da viagem que Rosa fez em 1952 (muitas dessas anotações serviriam posteriormente para a redação de Corpo de Baile), originais que revelam o escritor lapidando cada palavra, lendo e relendo. Um apuro de um escritor artesão e que tornou sua obra uma arte universal, como bem lembrava Antonio Cândido. O crítico e professor da USP afirmou: “A gente sentia que o regionalismo dele tinha universalidade dos temas, uma vibração espiritual sobre os grandes problemas que atormentam o homem. A linguagem dele não era documentária, na verdade ele estava criando, inventando uma linguagem plantada em Cordisburgo, mas estava ligada às raízes da língua portuguesa.” 

 

Cadernos contêm também desenhos de Guimarães Rosa
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

            Ler-reler-ler-outra-vez-ler-sempre Grande Sertão – Veredas, eis o maior prazer que um livro pode nos proporcionar.



sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Leonardo



            Os amigos já não se espantam com minhas contradições. Há muito venho dizendo que não aprecio o gênero literário das biografias, se é que elas constituem um gênero próprio. Pedro Nava foi mestre do memorialismo, tendo traçado ótimo retrato da cultura brasileira do século XX; penso que isso é bem diferente do conteúdo de biografias que chegam a fazer sucesso, tipo Plínio Salgado, João Goulart ou José Dirceu.
            Também estou cansado de afirmar que já não leio livros com mais de 200 páginas, não tenho tempo para isso, posso não chegar ao fim se os volumes forem mais avultados.
            Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson (Intrínseca, 2017), é uma biografia e tem mais de 600 páginas: acabo de devorá-lo com enorme entusiasmo!
            Por que? Para tentar conhecer melhor aquele que talvez tenha sido o homem mais brilhante de toda a Renascença, para não dizer de todos os tempos e ser acusado de exagero. 
           O livro não se destaca por suas qualidades literárias e sim pelas peripécias do biografado.
            Ao final, Isaacson enumera alguns conselhos de Leonardo, anotados em seus incontáveis cadernos, e que traduzem bem as ideias do gênio e representam uma maneira de ser. São eles:

“Seja curioso, incansavelmente curioso.
Busque o conhecimento pelo simples prazer da busca.
Conserve a capacidade das crianças de se maravilhar.
Observe.
Comece pelos detalhes.
Veja o que está invisível.
Mergulhe no desconhecido.
Distraia-se.
Respeite os fatos.
Procrastine.
Faça com que o perfeito seja inimigo do bom.
Pense visualmente.
Evite fechar horizontes.
Faça com que seu alcance seja maior do que sua compreensão.”
Alimente sua fantasia.
Crie para você, não só para os patronos.
Trabalhe em conjunto.
Faça listas.
Faça anotações – no papel.
Esteja aberto ao mistério.”

            Leonardo seguiu ao pé da letra isso que registrou, é fruto da experiência. Um desses conselhos – procrastine – dominou toda sua vida, o que explica a enorme quantidade de obras inacabadas ou nunca começadas. Colaborou igualmente para tais fatos o conselho distraia-se, bastante utilizado por ele. O gênio tinha muito de humano.


            Outro: crie para você, não só para os patronos, explica por que Leonardo, ao morrer, tinha em seu quarto a Mona Lisa.
Ao vê-la no Louvre, alguns desdenham a obra, Quadrino pequeno, Pura fama, Não tem nada demais, Há pinturas muito melhores... Depois de ler o livro de Isaacson e olhar o quadro com redobrada atenção, então é possível apreender seu justo valor, uma das obras mais importantes de todos os tempos.