Perdido em pensamentos o
lavrador passeia sob a chuva
por seus campos vazios, mãos
nos bolsos,
na cabeça
a colheita já plantada.
Um vento frio vem encrespar a água
entre as ervas tostadas.
Por toda parte
o mundo rola friorento para longe:
negros pomares
escurecidos pelas nuvens de março -
deixando espaço livre aos pensamentos.
Lá embaixo, além da galharia
rente
ao carreiro encharcado de chuva
assoma a figura artista do
lavrador - compondo
- antagonista
(tradução: José Paulo Paes)
***
Comentário
de José Paulo Paes sobre William Carlos Williams, publicado
no livro "Poemas" (Companhia
das Letras, 1987):
“Poeta
fundamental numa tradição de gigantes, a poesia norte-americana, em que cada
autor parece estar observando o mundo pela primeira vez e inventando a linguagem
poética (...). Dentro desta tradição, William
Carlos Williams se destaca
por sua capacidade de transformar todo assunto ou objeto em matéria poética.
Daí sua atenção toda peculiar ao fugaz e ao diminuto, ao aparentemente
desimportante, enfim.”
O poeta americano William Carlos
Williams foi abundantemente citado por Paterson, verdadeiro ídolo. (Ron Padgett
certamente gostava de WCW.)
E por falar
em “todo assunto ou objeto [é] matéria poética”, lembrei-me de Manoel de
Barros, talvez o maior de todos esses poetas aqui citados, em matéria de inutilidades poéticas:
Matéria de Poesia
Todas as
coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
O homem que
possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de
10x20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé
gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia
As coisas
que não levam a nada
têm grande importância
têm grande importância
Cada coisa ordinária
é um elemento de estima
Cada coisa
sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se
encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
As coisas
que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
Tudo aquilo
que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
As coisas
que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia
Tudo aquilo
que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de
água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso
Tudo que
explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas
desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que
explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom
para o lixo é bom para poesia
Importante
sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas
jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora
Manoel de Barros, Gramática
Expositiva do Chão (Poesia completa) - Leya 2010.