Das funções mais nobres da leitura, uma é a de provocar o leitor. Ela depende de dois fatores fundamentais: um bom texto, inteligente, de conteúdo instigador e boa forma literária, capaz de atrair aquele que o lê pela força da arte; em segundo lugar, o próprio leitor, se ele se deixa provocar, se preserva a curiosidade infantil e está aberto a novas ideias e especulações, se não se encontra cristalizado e imobilizado pelos ‘pré-conceitos’.
Das formas mais eficientes de aceitar e elaborar a provocação contida numa boa leitura, uma é a de escrever sobre o que se leu e agora pode analisar, questionar, interrogar, aceitar, rejeitar ou duvidar do que se acaba de ler. Tal exercício, no mínimo, traz em si a capacidade de expandir entendimento, sentimentos e emoções, sobre o tema em questão.
Adriane da Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas na USP, faz a apresentação do livro O melhor do teatro grego (tradução de Mário da Gama Kury, Zahar editores, 2013), que contém as peças Prometeu acorrentado, Édipo rei, Medeia e As nuvens. Reproduzo aqui um parágrafo do belíssimo texto de Duarte:
“A emoção está no cerne da experiência dramática dos gregos. Platão e Aristóteles discorreram sobre o papel das emoções no teatro, especialmente no que toca à tragédia. Para Platão, buscar deliberadamente comover os expectadores, como fizeram, os tragediógrafos, é nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidadão. Daí, entre outras razões, os poetas trágicos estarem excluídos da cidade ideal juntamente com os épicos. Já Aristóteles, embora tenha sido discípulo de Platão, compreende diversamente a questão. Para ele, o prazer da tragédia está em suscitar e purgar certas emoções, processo que ele denomina catarse. No caso da tragédia, essas emoções seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificação entre o expectador e o herói trágico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do último e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristóteles não se digna a explicar na Poética, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artística.”
“Buscar deliberadamente comover os expectadores” é o que chamei de provocação. A literatura faz isso magistralmente, mas não apenas a literatura; se dermos um salto para os tempos atuais, poderemos enfrentar o mesmo problema diante do cinema, tipo de arte de penetração extraordinária em todas as camadas sociais, e que por isso serve ao propósito deste texto quase ingênuo.
Há o filme e há o expectador. Por que existe o aficionado pelos filmes de terror? O que pretende ele ao desafiar o medo que as imagens lhe causam? (Porque se não causam, não faz sentido ver filme de terror...) Deseja apenas provar que é corajoso e valente? Ou se trata de desafiar as próprias emoções, na tentativa de dominá-las?
Há quem prefira ‘filme de amor’. Tipo sessão da tarde, daquele romantismo derramado que provoca suspiros e derrama lágrimas. Por que chorar diante da fantasia? Isso causa prazer ou dor? A emoção, represada, precisa transbordar? Para outros, serão lágrimas de enfado.
Cinema de violência explícita e incontida faz sucesso mundo afora: são murros, tiros, rajadas de metralhadora, golpes de espada a transfixar o inimigo, jugulares esguichando suco de tomate, cenas horripilantes de tortura, tudo é apreciado a ponto da saliva escorrer pelo canto da boca de certo tipo de expectador. Para que? O que está a extravasar agora? Agressividade? Ódio? Ou é simplesmente a catarse aristotélica! Enquanto isso, “Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer”, afirma Drummond em Os ombros suportam o mundo.
Filmes de suspense costumam ser apreciados, exceto pelos que não toleram sustos, seja porque prefiram a calma contemplativa, ou porque talvez vivam permanentemente assustados. As razões de tais preferências e aversões quase sempre nem o expectador conhece, bem guardadas no inconsciente de cada um.
O que todos ‘pré-sentem’ é a necessidade de aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e emoções. Para tal, há quem prescreva os clássicos da literatura; outros, a rodriguiana “vida como ela é”; ouvir Mozart ou Beethoven pode vir a ser um santo remédio; o cinema também serve, e muito – terminado o filme, é bom conversar sobre ele. Para os adeptos do bungee jumping, talvez seja necessária mesmo uma terapia.
Estas são apenas algumas associações que me ocorreram diante das magníficas provocações de Adriane da Silva Duarte. Meu eventual leitor, pensa o quê?
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