segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Mansa neurose

 

 

De antemão confesso que desde sempre cultivei o hábito de comprar mais livros do poderia lê-los. Frequentador assíduo de sebos e livrarias, desde os tempos da mocidade no Rio de Janeiro, com frequência levava para casa dois ou três volumes, quando a situação financeira era favorável. Por esta mania recebi duras críticas ao longo da vida, até mesmo de amigos próximos; às vezes, o riso era de mofa. 

            O riso de mofa se repetia quando adquiria o mesmo livro várias vezes, no lançamento de edições comemorativas, por exemplo. Grande Sertão, do Rosa, que me lembro, comprei quatro ou cinco exemplares. A meu favor digo que é a única coisa que gosto de comprar nessa vida. 

            Em tempos de isolamento pandêmico, que sigo à risca, a mansa neurose muito tem me valido. Ontem mesmo, domingo de chuva, fui a minha biblioteca à cata de um certo volume de Mircea Eliade, depois de assistir Youth Without Youth (Velha juventude, em português), filme teuto-franco-ítalo-romeno-estadunidense de 2007, dirigido por Francis Ford Coppola, baseado em novela do autor romeno. (Destacam-se os atores Tim Roth e Bruno Ganz.)

            Não encontrei o livro procurado – está cada vez mais difícil torcer o pescoço diante de uma prateleira, tirar os óculos, me aproximar, colocar os óculos, me afastar, tudo embaçado. Em remota estante, que não vasculhava há anos, para grande espanto, descobri uma preciosidade que não me lembrava ter adquirido! Um livro de Paulo Leminski! Ensaios e anseios crípticos, da Editora Unicamp, segunda edição ampliada, 2012. Edição bem cuidada, uma felicidade.

            Após consultar a ficha catalográfica e ver o detalhado índice, duas outras manias deste leitor, abri o livro aleatoriamente e li: 

 

M., DE MEMÓRIA

 
            Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
            Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
 
            Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Troia,
            Assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
 
            Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
            Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
 
            Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
            Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
 
            Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
            Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

 

 

            É assim que um poema fecha a crônica. Obrigado Leminski. E ri, quem não sabe que pode valer a pena cultivar uma neurose.

Um comentário:

  1. André, eu tenho a impressão que você está escrevendo cada vez melhor. Eu adorei essa crônica, do título ao desfecho. Mas eu sou suspeito...

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