quarta-feira, 27 de abril de 2022

A educação de Montaigne




Michel de Montaigne 


 

O caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo publicou no último fim de semana (23 abr 2022) texto reproduzindo a aula magna proferida pelo empresário Luiz Frias, Publisher da Folha, no último 7 de abril, Dia do Jornalista, na Faap. A aula é magnífica, mas destaco aqui apenas o trecho em que Frias fala da educação recebida por Montaigne. O tema há de interessar a todos nós.

 

“Planejei comentar três sugestões/palpites práticos para a formação de futuros jornalistas e profissionais de mídia e comunicações e terminar com algumas considerações sobre tecnologia, a abundância e a disponibilidade de informações propiciadas pela rede, algumas palavras sobre fake news e sobre a importância do jornalismo profissional daqui para a frente.

Gostaria de começar falando um pouco sobre Montaigne. Não a avenida luxuosa e famosa de Paris, mas o pensador renascentista francês Michel de Montaigne. Ele nasceu em 1533 e morreu em 1592, vivendo, portanto, 59 anos. Sua existência transcorre no auge do Renascimento e num mundo recém-transformado pelas grandes navegações e pelo descobrimento das Américas.

Como referência, Montaigne estava a dez dias de completar 31 anos quando Michelangelo Buonarroti morreu. E nasceu quase 14 e 13 anos após as mortes de Leonardo da Vinci e Raphael (Sanzio), o pintor, respectivamente. Teve grande influência sobre numerosos autores do Ocidente, como Shakespeare, Descartes, Voltaire, Darwin, Marx, Emerson, Foucault, Nietzsche e Freud, entre outros. De família próspera, seu avô fez fortuna como comerciante de arenque, e seu pai foi prefeito de Bordeaux.

Mas o que gostaria de destacar é a educação sui generis de Montaigne, planejada e executada em detalhe por seu pai. Logo que nasce, é levado para uma pequena cabana, onde vive seus primeiros três anos exclusivamente na companhia de uma humilde família camponesa, de modo a, nas próprias palavras de Montaigne, "atrair o menino para perto das pessoas, e das condições de vida dessas pessoas, que necessitam de nossa ajuda".

Após esses três primeiros anos de vida espartana, Montaigne é levado de volta para o château do pai. Dos 3 aos 6 anos, a educação do menino é atribuída a um tutor alemão, especialmente contratado pelo pai, um doutor que não falava uma palavra em francês, mas fluente em latim, com o objetivo de fazer dessa língua seu primeiro idioma.

O pai também admitiu outros dois auxiliares que falavam latim, com ordens estritas para apenas se dirigirem à criança nessa língua. A mesma regra era respeitada pelos pais da criança e pelos funcionários que ali trabalhavam. Só a partir dos 6 anos é que Montaigne começa a falar e estudar o francês.

Outra curiosidade engendrada pelo pai foi acordar a criança todos os dias com música tocada ao vivo. Diz Montaigne no ensaio "Sobre a Educação das Crianças": "Quanto ao grego, meu pai tencionou que eu o aprendesse metodicamente. Mas de um jeito novo, de forma de brincadeira. Ele fora aconselhado a me fazer apreciar a ciência, mas sem forçar minha vontade, meu desejo; e a educar minha alma com doçura e liberdade, sem rigor nem coação. Alguns pretendem acordar crianças de manhã aos sobressaltos e com violência perturbar seu tenro miolo, meu pai chegou a mandar me acordar ao som de um instrumento, e nunca fiquei sem alguém que me prestasse esse serviço".

Ter como primeira língua o latim facilitou a Montaigne, leitor voraz, ler os clássicos gregos e romanos e colocou a sua disposição a maior biblioteca disponível na época. E nos leva a especular se Montaigne, sem essa peculiar formação, poderia ter escrito os "Ensaios", sua única obra, de três volumes e aproximadamente mil páginas.

Aos 38 anos (lembrando que naquela época poucos ultrapassavam os 40), resolve afastar-se de seus compromissos públicos e delega a administração de seus bens a terceiros. Dentro de uma torre de sua propriedade no château que herdara do pai, Montaigne instala sua impressionante biblioteca e seu quarto. Ali trancado a maior parte do tempo, dedica seus últimos 20 anos de vida à leitura de livros e à redação dos ensaios.

"Nunca viajo sem livros, seja em tempos de paz ou de guerra. Livros, creio, são a melhor provisão que um homem pode levar na jornada de uma vida." Com essa frase de Montaigne, elenco minha primeira sugestão na formação de qualquer jovem e, em particular, daquele que almeja ser um jornalista ou trabalhar no mundo das comunicações. Leia muito. Leia tudo o que possa despertar seu interesse. Não há como aprender a escrever bem sem escrever, mas ler ajuda muito a escrever bem. Em mais de 40 anos nesse negócio, nunca vi ninguém escrever bem, com inteligência, clareza, objetividade e estilo, que não fosse um leitor compulsivo. Escreva sempre e muito, mas leia muito mais do que escreva.  (Grifo meu.)

E, se for em português, leia Machado de Assis, aconselhava Cláudio Abramo, grande jornalista brasileiro, talvez um dos mais influentes jornalistas, tanto na história da Folha como na do Estado de S. Paulo.”

 

            No início de século XVI, o pai de Montaigne sabia como educar uma criança. Os resultados comprovam a eficácia de seu método. E hoje, o que sabemos sobre isso? O que praticamos sobre isso? Vale a pena refletir.

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/04/apartidarismo-e-base-para-jornalismo-critico-e-independente-diz-publisher-da-folha.shtml

 

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