“Quando escuto Bach, imagino que Deus existe”.
A afirmação é de Alberto da Costa e Silva para a Folha de S.Paulo (23.set.2018), quando o historiador, poeta, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, vencedor do Prêmio Camões, revela sua relação com Johann Sebastian Bach, mais precisamente com a Missa em Si Menor.
Confessa Costa e Silva: “Desde menino, deixou-me a fé. Por isso, penso que não posso emocionar-me e comover-me com a mesma intensidade de quem, sendo católico, ao ouvir essa missa, pede perdão por não ser santo. Quando a escuto, porém, esqueço muitas vezes a minha desesperança de incréu e não resisto a imaginar que Deus existe e que a vida é uma parábola da eternidade. ...A grande “Missa” de Bach iluminou a minha juventude. Pus nela o meu horizonte de perfeição, e dela fui aproximando as sucessivas descobertas das muitas formas com que se dá a beleza.”
Eduardo Giannetti, em seu excelente livro O elogio do vira-lata e outros ensaios (Companhia das Letras, 2018), descreve seu arrebatamento pela Partita N.2 para violino solo, de J. S. Bach: “Religião: religaree relegere. Ouvir concentradamente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência religiosa por excelência: o restabelecimento do vínculo sagrado com a totalidade do universo (religare) e o retorno a uma síntese primeira, anterior à cisão da autoconsciência e à dor de formas repartidas (relegere). Acima de tido que conheço, reverencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera destes sons traduzem a ideia do absoluto.”
Giannetti prescreve ainda o modo-de-ouvir sua música predileta: “Ouvir bem – estar minimamente à altura do que se ouve – é trabalho exigente, normalmente precedido de um pequeno ritual. Silêncio, isolamento e concentração são essenciais: olhos cerrados, respiração apaziguada, corpo na horizontal.”
O leitor pode constatar a que ponto chega a influência de determinada obra (ou mesmo a música e arte de modo geral), na mente desses dois ilustres pensadores. Quem lê os dois ensaios e ainda não conhece as respectivas peças, corre atrás delas, na tentativa de descobrir as emoções registradas por ambos os ensaístas. Quem já as conhece, torna a ouvi-las, com a certeza que o tal arrebatamento se renovará.
Chama a atenção deste blogueiro que em ambas as críticas, os autores não entram em grandes considerações técnicas ou teóricas, detendo-se exaustivamente nas emoções e sentimentos neles provocados pelas obras. Pensei, Ah! então é possível escrever sobre determinada música – a música da sua vida! – sem a necessidade de grande conhecimento de teoria musical?!
Sem qualquer pretensão ensaística, modestissimamente, com minha formação musical nula, tendo apenas a meu favor o hábito de ouvir música erudita desde os 18 anos (por influência de minha mãe), e algum atrevimento, sinto o forte desejo de registrar aqui minha escolha. Com o único objetivo: que o possível leitor que nunca a ouviu vá correndo atrás dela, em busca do mesmo espanto que em mim provoca. Se ele já a conhece, torne a ouvi-la, sempre.
Falo da Sonata para Piano n032 em dó menor op. 111 de Ludwig van Beethoven, composta entre 1820 e 1822.
A música tem início de forma majestática, com certa melancolia, e somos logo surpreendidos por acordes dissonantes, prenunciando tragédia e drama, como se o compositor avisasse, Preparem-se, vocês vão ouvir algo que nunca foi tocado em piano algum! Este primeiro movimento tem a notaçãoMaestoso – Alegro con brio e appassionato.
Ouço-o, a despeito de sua construção complexa e belíssima, como uma preparação para o segundo movimento, a Arietta – Adagio molto simplice e cantabile.
Agora sim, chegamos ao transcendental!
Este segundo movimento, antítese do primeiro, despojado em vez de majestoso, tem início com a Arieta, em andamento bem lento, em dó maior (adágio muito simples e cantável, na orientação do próprio compositor). O tema é de fácil identificação e a sensação que me provoca é de tranquilidade, paz e felicidade.
Até que surgem as variações! A primeira, com a indicação dolce, é dançante e alegre. A segunda, ainda dolce, apresenta intrigante variação de ritmo, prenunciando o andamento jazzístico.
Na terceira variação Beethoven tem um surto! Esta é a única explicação que encontro para que um homem completamente surdo fosse capaz de criar um ritmo que seria “descoberto” muitos anos depois.
Da quarta variação em diante a mudança de ritmo é completa, o tema volta sempre e dissimuladamente, escondido num emaranhado de arabescos, semelhantes às improvisações do jazz, ou mesmo do boogie-woogie. Daí em diante é fechar os olhos e sentir os trinados agudos, acompanhados pelos sons graves da mão esquerda; só resta sonhar.
Há um sutil tom de ironia nos três últimos compassos da peça, mínima alteração no ritmo, como se o compositor afirmasse, Eu não disse que vocês ouviriam algo muito diferente?
(Há quem peça um terceiro movimento, a fim de estabelecer a forma clássica da sonata. Penso que este ouvinte não prestou atenção no final do segundo movimento. Ele encerra a própria composição e a sonata, como concebida até então. Agora inventem outra coisa, diria Beethoven...)
Não sinto necessidade de associá-la à existência de um ser superior, mas é com respeito e humildade que ouço a música da minha vida, pois cada vez que a ouço surgem inesgotáveis descobertas, acompanhadas de novas emoções.