Mais 47 cenas de um romance familiar
O pai dizia pau, a mãe falava pedra, o pai vinho, a mãe água. Em tudo e por tudo defendiam com veemência pontos de vista opostos. Aprendi a abotoar a camisa de baixo para cima, segundo instruções de minha mãe, e de cima para baixo, de acordo com meu pai.
Muitas vezes, apenas por pirraça. Ou cizânia azedume agastamento arranca-rabo malquerença chaça porfia quizila implicância cisma rusga testilha arenga paliota peguilha rebordosa querela. O motivo não importava.
Certa vez, entretanto, o pomo da discórdia – maçã oferecida pela deusa Discórdia à mais bela – assumiu grande sofisticação, acompanhada de alguma graça e humor, o que justifica ser acrescida à Mais 47 cenas.
A mãe apreciava a música erudita (o pai nem tanto, preferia o tango). Gostava dos clássicos, Bach, Mozart, Brahms, Chopin, mas Beethoven era um deus, acima de tudo e de todos. E era bastante razoável o senso crítico desenvolvido por ela, às vezes surpreendente:
– A obra para piano de Chopin é magistral, mas os dois concertos para piano pecam pela fraca orquestração.
Era peculiar a crítica que ela fazia a Villa-Lobos: adorava as Bachianas, não suportava sua música de câmera. Chamava de “barulhentos” os quartetos para cordas do ilustre brasileiro.
Até que um dia, para espanto geral, o pai saiu-se com esta:
– Fulano (não me recordo do nome) afirmou que os quartetos para cordas de Villa-Lobos estão acima de até mesmo dos quartetos de Beethoven.
Não posso imaginar de onde o pai tirou tal ideia, já que não costumava interessar-se pelo assunto, mas a afirmação caiu como uma bomba, pois ao mesmo tempo que enaltecia os quartetos de Villa-Lobos, depreciava Beethoven, o que era realmente ofensivo.
Cizânias.
Podendo, um beliscava o outro, assim como fazem as crianças, só para provocar.
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