“Para o alfarrabista, a história pessoal dificilmente poderia ser narrada pelo próprio indivíduo, antes pelo vizinho que, embora ausente do drama alheio, tinha o mérito de deformar, de ampliar, de cancelar qualquer aspecto da jornada do outro, de se acercar da sua presumível verdade.”
O trecho acima encontra-se na página 369 de Um dia chegarei a Sagres, de Nélida Piñon (Record, 2020), um livro “difícil” (voltaremos a ele), mas que dá margem a comentários e especulações. O alfarrabista da história representa o sábio, homem que coleciona documentos históricos – dá valor à verdade! –, mentor do personagem central do livro.
A primeira sentença é categórica: “a história pessoal dificilmente poderia ser narrada pelo próprio indivíduo”.
Alguém próximo (vizinho), ou que se aproxima, este sim será capaz de contar a história do outro, embora não a viva propriamente. Por que? Porque será capaz de se utilizar da ficção para contá-la; só a ficção tem a capacidade de deformar a realidade, de aumentá-la ou mesmo suprimi-la.
E para quê modificar a realidade vivida pelo outro através da ficção? Simplesmente para poder chegar um pouco mais perto da verdade. Se o sujeito, ele mesmo narra sua história pessoal, haverá de afastar-se cada vez mais da verdade, sem se dar conta disso; a ótica dele se estreita, ao reduzir a visão das coisas e do mundo apenas sob seu próprio olhar e entendimento; onde não haverá ficção, e sim mentira. Mentira inconsciente, não intencional, pois a verdade mais íntima de cada um ninguém revela, distanciando-se assim da verdade.
E a verdade será sempre presumível, como escreve Nélida Piñon.
Sobre literatura e verdade, Manoel de Barros dizia que só o que se inventa é verdade. Hilda Hilst acrescentou, "quanto mais poético, mais verdadeiro". Para complicar, Marcelino Freire gosta de dizer aos quatro cantos que "toda obra é autobiográfica." Como ficamos, André?
ResponderExcluirEu me vejo, ele me vê,
ResponderExcluirquem melhor a mim me doma?
Eu me leio, ele me lê,
cada um num idioma...