Folhetim
Décimo segundo encontro
Ricardo, o engenheiro químico que até agora tem participação apagada, inicia o encontro:
Em primeiro lugar, deveríamos perguntar o que é um palavrão. Quem decide o que é ou não é um palavrão? O que será palavrão para um, não será para outro. A definição de taboo word (palavrão, na língua inglesa) no Oxford Advanced Learner’s Dictionary é “a palavra que muitas pessoas consideram ofensiva ou chocante, por exemplo, porque se refere ao sexo, corpo ou raça”.
Isso sem falar nas mudanças que o significado obsceno das palavras sofre com o passar do tempo. Que diabo! Diabo há alguns séculos era palavra impronunciável. Hoje, nem palavrão é.
Os pesquisadores descobriram que o palavrão nasce em um mundo à parte dentro do cérebro. A linguagem comum fica a cargo da parte mais sofisticada denominada neocórtex; já os palavrões ficam no subterrâneo, no chamado sistema límbico. É também a parte que controla nossas emoções. Trata-se de uma zona primitiva; nosso neocórtex é mais desenvolvido do que o dos demais mamíferos, mas o sistema límbico é bem parecido. Lá reside nossa parte animal, que sai da jaula de vez em quando na forma de palavrões.
Essas informações científicas explicam porquê falamos palavrões. De vez em quando eles saem... Porém, escrever um palavrão é outra coisa. Quem escreve pensa, e as palavras não saem, são registradas letra por letra. A responsabilidade de quem escreve portanto é maior, exatamente porque tem tempo para pensar. Isso não que dizer que não possamos escrever um palavrão. Podemos, porém com mais parcimônia do que o dizemos.
Lembro-me de um texto de José Saramago, nosso Nobel de Literatura, em que ele vinha mostrando toda sua indignação para com uma determinada posição política, num crescendo de raiva, até que subitamente escreve um palavrão, e causa grande impacto no leitor! Portanto, colegas, o problema reside em que momento do texto lançar mão do palavrão.
Obrigado pela paciência, termina Ricardo.
Aplaudidíssimo, merecidamente. E o que vocês acharam da carta lida ontem por João, pergunta Tobias. Clarice logo responde que não gostou. Bem, Professor, ele conseguiu o empréstimo, acrescenta Suzete, para risada geral; com os palavrões parece que João conseguiu dar credibilidade ao seu estado de penúria, com intenso realismo; a grosseria exposta na carta tinha essa finalidade, e comoveu o amigo; eu gostei, conclui a cabeleireira.
Tina, a senhora de Guaratinguetá, observa, Conheço bem o escritor e poeta Paulo Viana, que já teve uma bela crônica lida aqui; ele diz com toda a ênfase que “Machado de Assis nunca escreveu um palavrão”, o que penso ser um baita argumento. Thiago contra-ataca, Era um outro tempo, Tina.
Sucedem-se as opiniões, uns pró, outros contra. Clara, que pouco tinha falado até agora, cita Marcelo Mirisola, que ganhou notoriedade abusando do uso de palavrões, mas infelizmente nem Tobias havia lido qualquer coisa de Mirisola. Puta que pariu, vocês precisam ler mais, dispara Clara! E, sob gargalhadas, todos concordam que o palavrão agora está bem empregado.
Tobias resolve dar uma aula, contrariando seus princípios:
O folclorista pernambucano Mário Souto Maior (1920-2001) decidiu percorrer várias regiões do país em busca dos palavrões e o resultado pode ser encontrado na nova edição de "Dicionário do Palavrão e Termos Afins". E mostra o livro!
O dicionário foi publicado originalmente em 1974, com prefácio de Gilberto Freyre, e sofreu censura dos militares. Foi relançado nos anos 80, e a primeira edição esgotou rapidamente. Carlos Drummond de Andrade defendeu o glossário publicamente:
"A carga de tais preconceitos é tamanha que o "Dicionário do Palavrão e Termos Afins", de Souto Maior, levou anos trancado em gavetas de censura, porque certo ministro da Justiça considerava atentatória aos costumes uma obra que tem similares de nível universitário na Alemanha, na França e outros países. Foi necessário que a opinião pública forçasse os governos militares à abertura democrática, embora tímida mas já hoje irrecusável, para que esse livro conquistasse direito de circulação e, portanto, de ser criticado. Seu autor, julgado sumariamente em sigilo de gabinete, seria assim um pornógrafo, quando na realidade se trata de um dos mais qualificados estudiosos da cultura nacional em seu aspecto de criação popular, de riquíssima significação."
Se tem até dicionário, o palavrão merece nossa consideração, penso eu, e estou em boa companhia, arrematou Tobias.
Senhores, para amanhã conversaremos sobre Poesia! Tenham uma boa tarde.
Acrescentando e esclarecendo: o fato de Machado não ter usado palavrão, não desautoriza o uso atual. Novos tempos, novas liberdades. Só não acho que seja obrigação. É possível indignar-se sem palavrão. Qualquer dia vou postar um pequeno texto sobre a palavra "contumelioso"...
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