domingo, 28 de abril de 2019

Amós Oz com Shira Hadad




Quem gosta de escrever há de compreender perfeitamente a pergunta de Shira Hadad a Amós Oz: “O que impulsiona a sua mão quando escreve?” A resposta do escritor é de extrema delicadeza, e atesta a qualidade de sua literatura (*):

“No pátio do ginásio Rechavia, em Jerusalém, havia um eucalipto no qual alguém tinha gravado um coração trespassado por uma flecha. No coração trespassado, nos dois lados da flecha, estava escrito: Gadi – Ruti. Lembro que já então, eu tinha talvez uns treze anos, pensei: com certeza quem fez isso foi esse Gadi, não Ruti. Por que fez isso? Ele não sabia que amava Ruti? Ela não sabia que ele a amava? E parece que já então eu disse comigo mesmo: talvez algo dentro dele soubesse que isso ia passar, que tudo passa, que esse amor ia acabar. Ele quis deixar alguma coisa. Quis que restasse uma lembrança desse amor quando ele passasse. E isso é muito parecido com o ímpeto de contar histórias, escrever histórias; salvar alguma coisa das garras do tempo e do esquecimento.”

            Mesmo muito longe de dispor da arte de Amós Oz (que é capaz de contar uma história a partir de um coração gravado numa árvore),  penso que também quero deixar alguma coisa, em especial para as pessoas mais próximas, familiares, e uns poucos amigos. Apenas isso, deixar alguma coisa.
            Shira pergunta ainda “de onde vem a história”? E Amós Oz responde com fragmento de belíssimo poema de Ana Akhmátova, que ele traduziu do inglês, versão de Stephen Berg, para o hebraico, e agora traduzido para nós por Paulo Geiger, e com tantas traduções o poema continua lindo!

“E às vezes fico sentada. Aqui. Ventos do mar gelado
sopram por minhas janelas abertas. Não me levanto, não
as fecho. Deixo o ar me tocar. Congelo.
Crepúsculo vespertino ou aurora, as mesmas nuvens brilhantes.
Um pombo bica um grão de trigo em minha mão estendida,
e esta amplidão, sem fronteiras, da brancura das páginas na coluna
                                                                           [em que escrevo –
Um solitário e nebuloso impulso ergue minha mão direita, 
                                                                                  [me conduz,
muito mais antigo do que eu, ele vem e desce,
azul como um olho, sem deus, e começo a escrever.”

            Qualquer coisa, muito mais antiga do que eu, que vem e desce, e me pacifica por dentro.


(*) Em Do que é feita a maçã, de Amóz Os com Shira Hadad, Companhia das Letras, 2019, tradução do hebraico de Paulo Geiger. Bela capa, com ilustração de Kiko Farkas.
            

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