No momentoso filme História de um casamento, do diretor Noah Baumbach, Nicole (Johansson) e sua advogada Nora Fanshaw (Dern), combinam estratégia para declarar diante do tribunal, no caso de divórcio e guarda do filho pequeno. Nicole, a mãe, pensa em declarar que costuma beber de vez em quando uma taça de vinho; pretende confessar também que às vezes insulta o filho, quando ele passa dos limites. A advogada então a adverte, em monólogo memorável!
“Vou te interromper aqui. As pessoas não toleram mães que bebem e dizem ao filho: ‘idiota’. Eu entendo, também faço isso. Nós podemos aceitar um pai imperfeito. O conceito de um bom pai só foi inventado há uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base de nossa conversa judaico-cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando ele morre. O pai não aparece. Nem apareceu para a trepada. Deus está no céu. Deus é o pai e Deus não apareceu. Você tem que ser perfeita, mas Charlie pode ser um puto desastre. Você sempre será colocada no nível mais alto. Você é uma fodida, mas é assim que é.”
Prossegue NOELIA RAMÍREZ em seu artigo História de um casamento ou a síndrome das mães ‘Virgem Maria’, para El País (9 dez 2019):
“A invenção do mito da “mãe virgem” é um clássico que se reproduz repetidamente em culturas isoladas, como recorda Katixa Agirre no recente Las Madres No (Transit, 2019), onde destaca outras referências históricas sobre este arquétipo. A autora lembra que na mitologia grega já se estabelece uma moral similar sobre a história da virgem Atenea, deusa da sabedoria e da guerra, que engravida depois que Hefesto ejacula em suas roupas e ela, com nojo, joga os restos de sêmen no chão, de onde nasce Erictonio. Maia, mãe do Buda, também concebeu o filho castamente em um sonho. Coatlicue, deusa asteca, ficou grávida enquanto varria e penas caíram do céu para que gerasse, sem pecado, um deus mexica, Huitzilopotchi. Na tradição persa, Anahita também gestou um deus, Mithras, sendo virgem.”
Há treze dias este blog publicou o texto Sincretismo religioso, (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/11/sincretismo-religioso.html) inspirado em publicação de Leandro Karnal, na qual o historiador afirma:
“Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena / Minerva, virou igreja de Nossa Senhora. Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como atributo de Osíris e Cristo.”
A conclusão a que se pode chegar é que tudo é sincretismo, mistura de diferentes culturas e muitas tradições, incluindo o processo de criação de Deus ou de Maria. Karnal enfatiza: “Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária. Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas as culturas...”
O provocante filme História de um casamento traz inúmeros outros aspectos a serem debatidos, incluindo aquele do “pai ausente”. Voltaremos a eles nesse blog.
Parece que a mente humana funciona mitologicamente. A cultura toda carece de chão firme. Não fosse o pensamento mágico, simbólico, ai de nós!
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