Sob o título O que é sincretismo? Todos os deuses e cultos do mundo são costuras de muitas tradições, Leandro Karnal (O Estado de S. Paulo, 27 nov 2019) descreve com absoluta clareza o processo de formação das diversas religiões.
Afirma o historiador: “Não existe uma religião original ou uma fonte absoluta. Explico-me. O Deus de Israel é fruto da fusão de uma entidade chamada El e outra denominada Iaveh (e suas muitas variantes de escrita). ... No exílio da Babilônia, sacerdotes costuraram um processo que vinha aumentando fazia anos: a fusão dos dois deuses em uma nova entidade nacional dos hebreus, cada vez mais imaterial e única. Israel passou do politeísmo para a monolatria e, muito mais tarde, para o monoteísmo. As narrativas foram colocadas por escrito por um processo visível ainda nas linhas de colagem da Bíblia. Existe o texto eloísta e o javista e eles foram unificados de forma mais ou menos eficiente pela chamada tradição sacerdotal.”
De modo ainda mais instigante, Karnal pergunta: “E o demônio? Talvez seja a mais sincrética das criaturas. A serpente que provocou a queda do homem, a entidade que obtém de Deus autorização para atormentar Jó e o ser que dialoga com Jesus no deserto são completamente distintos. Porém, a narrativa cristã uniu todos como Lúcifer ou Satanás, aquele que sussurrava ações maléficas a Judas e que luta contra o Bem no Apocalipse.”
Tema mais delicado, pois sujeito a radicalismos é a figura de Maria, mãe de Jesus. Karnal aponta: “Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena / Minerva, virou igreja de Nossa Senhora. Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como atributo de Osíris e Cristo.”
E Karnal conclui: “Todos os deuses e cultos do mundo são costuras de muitas tradições. ...Sob esse aspecto, tudo é sincretismo, inclusive aquele processo de criação de Deus ou de Maria. Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária. Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas as culturas...”
A aceitação de tais conceitos, baseados em fatos históricos, certamente haveria de proporcionar um melhor entendimento entre diferentes religiões e religiosos de todo o mundo, evitando disputas inúteis e até mesmo as chamadas guerras santas. No mundo atual, isso parece pouco provável.
Muito interessante o conceito de sincretismo: ideias se misturam, interagem e se metamorfoseiam, e é isso que é a riqueza de todas as culturas.
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