sábado, 30 de novembro de 2019

Dor e Glória





Conversar sobre cinema é bom e faz bem, principalmente porque cada um vê seu próprio filme, e confrontar nossa opinião com outros pontos de vista alarga nossa percepção e sensibilidade. Mas isso não vale para qualquer filme, a menos que Pedro Almodóvar seja o diretor.
            Acabo de ver Dor e Glória, e não havendo interlocutor disponível no momento resolvo escrever. Antonio Banderas interpreta um cineasta em fim de carreira, consumido pela doença e pelas drogas, impedido de filmar pelo precário estado físico e isolamento social, e quando percebemos que seu corte de cabelo imita o de Almodóvar, fica evidente que predomina a autobiografia. Quanto há de realidade, quanto há de ficção, isso nunca importa. O resultado é comovente.
            A primeira e a última cenas são belíssimas. O filme começa com lavadeiras à beira de um rio, a cantar, lavar e estender roupa sobre o alto capim, observadas por um pequeno menino; uma delas é mãe dele. Percebemos então que que trata de memórias. Por razões óbvias, não escrevo sobre o fecho do filme.
            A infância do protagonista é descrita da forma mais poética possível, ao mostrar o imenso amor que une mãe e filho, a despeito das precárias condições materiais. (Almodóvar há de carregar tais experiências como algo fundamental na constituição de seu caráter.)
            A Glória é relatada de modo discreto, sem o estardalhaço das cores de Almodóvar, presentes do início ao fim do filme, indicando que algumas coisas nunca mudam; são de muitíssimo bom gosto, em meu ponto de vista, presentes nos detalhes, nos objetos do belo apartamento onde mora o cineasta, nos móveis, no vestuário, nas paredes, nas flores, até mesmo em uma certa porta de elevador. A Dor sim, ganha destaque e protagonismo, até mesmo quando Banderas – em ótima interpretação – entra ou sai de um taxi. Dói mesmo, para quem sabe o que significa dor nas costas.
            A homossexualidade, em meu modo de ver, destaca-se como tema central do drama. Ela é tratada de maneira sublime, com toda a delicadeza, porém de forma verdadeira, desde o beijo escancarado em um encontro de antigos amantes, até a manifestação de desejo do menino diante do homem nu, cena construída com toque de gênio. O diálogo tardio entre mãe e filho sobre o assunto é de uma franqueza e sensibilidade comoventes.
            A apresentação de monólogo escrito pelo protagonista e representado por antigo colega de cinema, relatando a difícil relação com parceiro usuário do cavalo (palavra repetida ad nauseam, para que o expectador nunca se esqueça), em um teatro com palco, cenário e plateia reais, me fez lembrar que em Hamlet, Shakespeare também colocou um peça dentro da peça principal. Belo artifício do diretor.
            Arrisco um palpite: se os ditos homofóbicos vissem o filme de Almodóvar com isenção, despidos de qualquer preconceito, com espírito aberto, talvez se encantassem com as diferenças, com as escolhas que cada um de nós fazemos na vida, com as várias possibilidades de amar. Se...
            Belíssimo Dor e Glória, dos melhores filmes de Pedro Almodóvar, em meu modo de sentir e pensar.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Sincretismo religioso


Sob o título O que é sincretismo? Todos os deuses e cultos do mundo são costuras de muitas tradições, Leandro Karnal (O Estado de S. Paulo, 27 nov 2019) descreve com absoluta clareza o processo de formação das diversas religiões. 
Afirma o historiador: “Não existe uma religião original ou uma fonte absoluta. Explico-me. O Deus de Israel é fruto da fusão de uma entidade chamada El e outra denominada Iaveh (e suas muitas variantes de escrita). ... No exílio da Babilônia, sacerdotes costuraram um processo que vinha aumentando fazia anos: a fusão dos dois deuses em uma nova entidade nacional dos hebreus, cada vez mais imaterial e única. Israel passou do politeísmo para a monolatria e, muito mais tarde, para o monoteísmo. As narrativas foram colocadas por escrito por um processo visível ainda nas linhas de colagem da Bíblia. Existe o texto eloísta e o javista e eles foram unificados de forma mais ou menos eficiente pela chamada tradição sacerdotal.” 
De modo ainda mais instigante, Karnal pergunta: “E o demônio? Talvez seja a mais sincrética das criaturas. A serpente que provocou a queda do homem, a entidade que obtém de Deus autorização para atormentar Jó e o ser que dialoga com Jesus no deserto são completamente distintos. Porém, a narrativa cristã uniu todos como Lúcifer ou Satanás, aquele que sussurrava ações maléficas a Judas e que luta contra o Bem no Apocalipse.”
Tema mais delicado, pois sujeito a radicalismos é a figura de Maria, mãe de Jesus. Karnal aponta: “Maria passou a ser cultuada em Éfeso, mesmo lugar do culto a Diana/Ártemis, uma entidade sempre virgem. A fusão de deusas-mãe do Crescente Fértil com a figura de Nossa Senhora foi bem documentada. Em alguns casos, transforma-se o lugar: o Partenon de Atenas, consagrado a outra virgem, Palas-Atena / Minerva, virou igreja de Nossa Senhora. Dogmas marianos foram proclamados em Éfeso e o processo de construção da imagem de Maria vai até o século 20 (dogma da Assunção). Nascer de uma virgem é comum a Mitra e a Jesus. Ressuscitar é lembrado como atributo de Osíris e Cristo.”
E Karnal conclui: “Todos os deuses e cultos do mundo são costuras de muitas tradições. ...Sob esse aspecto, tudo é sincretismo, inclusive aquele processo de criação de Deus ou de Maria. Não existe uma religião original e pura ou uma fonte primária. Religiões funcionam como cebolas com muitas camadas e, enfim, depois de retiradas, inexiste uma essência primeira. Sincretismo é a base de todas as culturas...”
A aceitação de tais conceitos, baseados em fatos históricos, certamente haveria de proporcionar um melhor entendimento entre diferentes religiões e religiosos de todo o mundo, evitando disputas inúteis e até mesmo as chamadas guerras santas. No mundo atual, isso parece pouco provável.


Especialista em microcontos

Persona

Manter as aparências ainda lhe fazia muito bem.



Sintonia

No desconforto de um fim de tarde escuro, frio e molhado, a música improvável voltou a tocar. Ficou.



Microconto

O encontro de dois preguiçosos.



Limiares ideais

Baixo para alegria e alto para dor.



Prosperidade

Seu antidepressivo mais eficiente ainda era a ambição.



Humanidade

Quer ser mais humano? Fracasse.



Aula de canoagem

– Aprenda a remar cansado.
– Opa! Isso eu sei.


Moisés Lobo Furtado

domingo, 24 de novembro de 2019

Formação de professores

Durante os anos de trabalho como professor universitário, e não foram poucos, certo tema me ocupou permanentemente, seguro que estava de sua importância para o bom desenvolvimento da relação ensino/aprendizagem. Trata-se da formação do professor, fator relegado a segundo plano naquela época, segundo minha experiência pessoal. Alguma coisa teria mudado desde então?
            Com satisfação, vejo hoje na Folha de S. Paulo (24.nov.2019) artigo intitulado Novas diretrizes para a formação de professores – Qualidade do docente é o fator principal na educação, de autoria de Mozart Neves Ramos, membro e relator deste tema no CNE (Conselho Nacional de Educação), e diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna.
O CNE aprovou recentemente as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação Inicial de professores para a Educação Básica  — da educação infantil ao ensino médio — e instituiu a Base Nacional Comum para essa formação. A qualidade do professor, segundo pesquisas e estudos científicos, é o fator mais determinante para a melhora da qualidade da educação básica, afirma Mozart.
“O documento intitulado “Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” definiu as competências profissionais docentes tendo por base três dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional.” Buscam-se “estratégias para melhorar a relação entre a teoria e a prática da formação docente”.
Analisemos as três competências profissionais apontadas pelo documento, segundo minha experiência profissional, repito, desde a formação na UERJ, no saudoso Hospital Pedro Ernesto, como médico residente, até tornar-me professor de Cirurgia na Universidade de Brasília (UnB). 
O (1) conhecimento profissional dos docentes sempre foi de bom ou ótimo nível em ambas as instituições, em especial na UnB. No início de minha carreira não havia pós-graduação em Cirurgia para o curso superior, com exceção da Residência Médica, considerada pós-graduação stricto sensu. Atribuo esta qualidade à boa formação profissional oferecida pelas Faculdades de Medicina à época, além do interesse pessoal daqueles que desejavam engajar-se na carreira universitária – gente que tinha amor pelo estudo e pelo conhecimento. 
A (2) prática profissional adquirida durante a Residência só podia ser aprimorada com a experiência vivida no cotidiano. Se tal experiência pudesse se desenvolver em um Hospital Universitário de bom nível, em alguns anos (há quem afirme que são necessários 15 anos para a formação de um bom cirurgião) teríamos um profissional satisfatório.
O (3) engajamento profissional, este sim, sempre foi um problema. Os baixos salários de professor sempre foram um desestímulo para a continuidade da carreira universitária, o que não constitui novidade. A clínica privada era, e ainda é competidora imbatível. 
Porém, este não é o único fator a afetar o engajamento na carreira universitária. A pesquisa é parte inerente da vida universitária, e nem todos estão dispostos a abraçá-la. Junto com ela vem a necessidade de publicar aquilo que se pesquisa, e a disposição para escrever sempre foi problema. Sem publicações não se aprimora o chamado currículo profissional, o que impede a ascensão acadêmica. 
No entanto, há um outro elemento que reputo ainda mais relevante: o gosto pelo ensino. Sem o prazer de ensinar, quer seja em sala de aula ou junto ao paciente – situação frequente em se tratando da Medicina – fica muito difícil perseverar na vida acadêmica. O professor pode ser dotado de ótimo conhecimento profissional, exercer prática médica adequada, mas não ter qualquer compromisso com o ensino, o que não é raro de acontecer. No início de minha careira não havia qualquer programa pedagógico para que o professor se inteirasse do significado pleno da palavra ensinar. Os cursos de pós-graduação lato sensu surgiram também para amenizar esta lacuna na formação do professor, mas os resultados nem sempre são satisfatórios. 
Ensinar não é tarefa fácil, se é que é possível ser realmente exercida. Já se afirmou que ninguém ensina nada a alguém, a pessoa aprende. Ao mesmo tempo, a relação aluno-professor pode vir a ser bastante desgastante, a ponto de desestimular o prosseguimento na carreira docente. Com absoluta certeza, tal relação durante a residência médica em cirurgia, em que o jovem profissional precisa  aprender a operar sem mesmo saber como empunhar um bisturi, é terrivelmente complexa. O ensino é realizado numa relação íntima de um para um. Ao cabo de dois ou três anos o médico residente aprende o suficiente para iniciar a carreira de cirurgião e se desliga do serviço. Os novatos continuam a chegar a cada ano, mas o professor é o mesmo, um ano mais velho, sempre. Se a operação é bem sucedida, o residente é aplaudido, se enche de orgulho, ganha a confiança tão necessária para prosseguir na profissão. Se surgem complicações, se o paciente morre, a responsabilidade é do professor. E os novatos não param de chegar...
Num belo dia de fim de inverno, o professor, cansado, precisa se aposentar.
Este singelo texto não pretende esgotar o tema, enumerar todos os fatores que interferem nos atos de ensinar e aprender, pouco falamos do aprendiz e de suas vicissitudes, enfim, desejo apenas ressaltar o que diz Mozart Neves Ramos, que a “Qualidade do docente é o fator principal na educação”.



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Fotoabstração N.60







Foto: AVianna, out 2019.
IPhone8S.

O cão de Leonardo




Animal extraordinário, no dizer de António Damásio, profundo estudioso da consciência, o cão não passou despercebido ao gênio de Leonardo da Vinci. Ele está representado neste desenho, estudo sobre as proporções da cabeça do animal.
            A curiosidade de Leonardo era infinita! Associada à grande capacidade de observação, tais qualidades permitiram que este homem tenha atravessado meio milênio, e ainda a despertar admiração, motivo de estudos e especulações. Porque explicar o gênio é impossível.



sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Criação literária




Acaba de ser lançado pela editora Perspectiva o livro de Michel de M’Uzan, Da arte à morte: itinerário psicanalítico, com tradução de Fabio Landa (2019). São textos esparsos, amparados na clínica e sustentados pela base teórica freudiana, e acima de tudo muitíssimo bem escritos, literatura do mais alto nível. 
            Interessou-me de imediato o primeiro texto, datado de 1964: Visão geral do processo de criação literária. Assinala o autor, a mais de meio século, fato que podemos pensar como fenômeno contemporâneo, aguçado pela mídias sociais; diz ele: “Existe por toda parte, em quase todos os meios, pessoas que escrevem, que entram de uma maneira ou de outra no circuito de produção dita artística e que, além do mais, têm meios de publicar o que fazem.” (Isso não é mesmo atualíssimo?)
            M’Uzan relata que no curso de uma análise pode surgir “o desejo mais ou menos frívolo” de escrever; o desejo de escrever pode transformar-se no fracasso da vocação; e pode surgir até a atividade literária mais genuína e autêntica! Compartilha a opinião de Freud, expressa em carta a Mlle N.N., em 27 de junho de 1934, de que “se o impulso para criar é mais forte do que as resistências interiores, a análise só pode aumentar, jamais  diminuir as faculdades criadoras”.
            Até que o autor chega ao âmago da questão: “A representação, efetivamente, parece-me ser um elemento fundamental da criação artística ou, mais precisamente, da criatividade em geral.”  
            A atividade de representação, porém, sofre influência permanente de elementos internos e externos, brilhantemente expostas pelo autor:

“Considero, efetivamente, que enquanto o narcisismo primário reina sozinho, não há nada a colocar em cena, já que tudo se passa, então, aquém do conflito. Somente no momento em que as pulsões se liberam e procuram os objetos, enquanto o mundo exterior começa a ser reconhecido como tal, é que as tensões nascem, engendrando uma situação traumática que o sujeito deverá afrontar. Essa necessidade vital vai conduzi-lo a elaborar a experiência por meio do que lhe é mais imediatamente acessível: uma representação de sua situação que é uma tentativa de síntese, uma busca de unidade. Para conseguir isso, o sujeito recorre espontaneamente à sua lembrança nostálgica da união narcísica  perdida, e ele terá tanto mais sucesso quanto for capaz de reencontrar o sentimento primitivamente vivido. Na obra que, eventualmente, resulte de tal representação interior, não é necessariamente o traumatismo que aparece, mas, com frequência, pelo contrário, a união, a reconciliação, a comunhão com o mundo expressa diretamente numa forma.”

            Com a mais profunda e sincera humildade, cônscio de minha insignificância  literária – escrevo apenas para mim e pelo prazer de escrever – faço agora referência ao meu segundo livrinho, 47 cenas de um romance familiar (Ed. PerSe, 2011), dedicado ao irmão e às filhas. Nele, o leitor vai encontrar tão somente “união, a reconciliação, a comunhão com o mundo”, embora expressas de forma imperfeita.
            Epígrafe do livro traz citação de Freud:

“Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas.”

Na cena A canequinha, “Pedro chega, entrega o boletim para a mãe [havia tirado a nota 9,5], tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim [promessa antiga feita pela mãe]. E dói muito mais na mãe.” (p.24).  
Ao escrever sobre o meu romance familiar, ao escrever sobre as sucessivas gerações das quais faço parte, permaneço na busca infindável do significado do chamado processo de criação literária. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Exorcismo

Meus quadros favoritos







E pensar que a prática do exorcismo persiste da Idade Média até nossos dias!
Museu do Louvre.



domingo, 10 de novembro de 2019

Bipedismo começa a ser explicado


Os primatas começaram a andar de pé nas árvores,
antes de chegar ao chão


Por que é revolucionária a descoberta de fósseis de primatas com 'pernas humanas'? Com esta manchete a BBC News Brasil (9 nov 2019) relata a descoberta de fósseis identificados entre 2015 e 2018, cuja importância só foi revelada recentemente, em publicação na revista Nature.
“Uma antiga incógnita sobre o bipedismo, a capacidade de andar de pé, ganhou resposta nos fósseis de um símio que viveu há 11,6 milhões de anos. Os resquícios deste animal, o primeiro símio com capacidade de ficar ereto, foram encontrados no solo argiloso da região de Allgäu, na Bavária, Alemanha.O símio, chamado Danuvius guggenmosi, tinha braços semelhantes aos de um bonobo, mas pernas como de ancestrais dos humanos. O Danuvius podia se pendurar nas árvores, mas seus membros posteriores se mantinham retos e podem ter sido usados ​​para caminhar. Os pesquisadores descobriram ossos de quatro exemplares: um macho e duas fêmeas adultos; e um de um indivíduo mais jovem.”
“Desde os trabalhos do naturalista britânico Charles Darwin, pai da teoria da seleção natural, tem sido intensamente debatido como e quando nossos ancestrais começaram a andar de pé. Os fósseis do Danuvius guggenmosi mostram que ele estava preparado tanto para andar de pé com os membros estendidos quanto para usar os quatro membros para, por exemplo, subir em árvores como outros símios. Esta combinação única demonstra, de acordo com os cientistas, que os primatas começaram a andar de pé nas árvores ou em ambientes simliares antes de chegar ao chão.”
“O novo estudo indica que a postura ereta teria se originado de um ancestral comum de seres humanos e símios que viviam na Europa, e não na África, como se pensava anteriormente. A descoberta também indica que o bipedismo começou muito antes do que se pensava.”
“Compreender como nossos ancestrais começaram a andar de pé ajudará a responder perguntas fundamentais sobre a evolução — mais especificamente da espécie humana, já que o bipedismo foi um marco que abriu caminho para capacidades como caçar e usar ferramentas.”

A passos lentos mas com perseverança, a Evolução das Espécies vai sendo decifrada, para melhor compreensão das origens do gênero humano.


O sena e a Notre Dame de Paris

Meus quadros favoritos



Johan Barthold Jonking (1821-1891)

Pintor e gravador holandês, precursor do Impressionismo.

sábado, 9 de novembro de 2019

Mulher lava os pés do menino






Encantado por este pequeno desenho, os olhos a marejar, permaneci um longo tempo admirando-o. Se a mulher lava os pés do menino é porque os pés do menino estão sujos. 
Imediatamente me veio à mente o poema de Fernando Pessoa, cujo primeiro verso é Num meio-dia de fim de primavera, em que o menino é completamente humano, e por isso suja os pés ao brincar na Terra. Reproduzo aqui as três primeiras estrofes que fazem parte do livro O guardador de rebanhos (F.P., Obra Poética, Nova Aguilar, 1976): 

“Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida, 
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e  justiça!”

            
            Tanta coisa pode acontecer “Num meio-dia de fim de primavera”... Basta dar liberdade à imaginação, sentimentos e emoções. Não foi preciso nem era possível me lembrar de todo o poema de Pessoa, mas a força das ideias, expressas na melhor forma poética possível  – “tornado outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva” –, foi suficiente para tornar aquele momento inesquecível.
             O desenho pertence à Faculdade de Bellas Artes, Porto, Portugal.

Homem vitruviano

“O Homem vitruviano de Leonardo é a materialização de um momento em que a arte e a ciência se combinam para permitir que a mente de um mortal pudesse abordar questões atemporais sobre quem somos e como nos encaixamos na grande ordem do universo. Também simboliza um ideal do humanismo que celebra a dignidade, o valor e o agente racional dos seres humanos como indivíduos. Dentro do quadrado e do círculo, podemos ver a essência de Leonardo da Vinci, e também a nossa própria, desnuda e de pé sobre a interseção entre o mundano e o cósmico.”

                                                     Walter Isaacson (Intrínseca, 1917)





            O capítulo Homem vitruviano, na biografia de Isaacson, descreve pormenorizadamente a origem desta ideia, a partir de Marcos Vitrúvio Polião, nascido por volta do ano 80 a.C., autor do único livro sobre arquitetura da Antiguidade Clássica, intitulado De Architectura
            Abaixo do desenho, Leonardo escreveu:

“Se você abrir as pernas o suficiente para que sua cabeça seja rebaixada em um quatorze avos de sua altura e levantar os braços até que seus dedos toquem a linha que passa pelo topo da cabeça, saiba que o centro dos membros estendidos será o umbigo, e o espaço entre as pernas formará um triângulo equilátero.”           

            Quando o curador da Gallerie dell`Accademia, em Veneza, permitiu que o biógrafo Walter Isaacson tivesse acesso ao desenho original, a experiência emocional descrita por ele é muito semelhante a nossa, quando estamos frente a frente com a obra, mesmo que esta esteja atrás de um vidro. Eis a descrição dele: “...fiquei chocado pelos entalhes feitos pela ponta metálica de Leonardo e pelos doze furos deixados pela ponta do compasso. Experimentei a sensação íntima e estranha de presenciar a mão do mestre em ação mais de cinco séculos atrás.”
            O que experimentei ao ver o desenho, mesmo atrás de um vidro, foi muito mais que “a sensação íntima e estranha”. A experiência foi íntima, não poderia ser de outra forma; uma certa sensação de estranhamento também ocorreu, admito, e ainda não tenho explicação para ela; porém, o que prevaleceu foi a emoção oceânica de poder ver, olhar, reparar em uma obra de arte inigualável, realizada – porque foi uma verdadeira realização – pelo gênio de Leonardo, bem ali na minha frente, 500 anos depois de criada. 
Continuo a procurar as melhores palavras para exprimir tais sentimentos e não as encontro. Emoção emoção emoção.

Um pequeno caderno


Assinala Walter Isaacson, em sua magistral biografia Leonardo da Vinci (Intrínseca, 2017), em capítulo especial sobre Os cadernos de Leonardo:

“Por ser descendente de uma longa linhagem de tabeliães, Leonardo d Vinci tinha talento inato para manter registros. Rascunhar observações, listas, ideias e desenhos foi algo que aflorou naturalmente. No começo da década de 1480, pouco depois de sua chegada a Milão, ele deu início a uma prática que o acompanharia pelo resto da vida: a de fazer registros com regularidade. Alguns dos cadernos começaram como folhas soltas do tamanho de um jornal em formato tabloide. Outros eram pequenos livretos encapados em couro ou papel velino feito um livro de bolso ou até menores, que ele levava consigo para tomar notas.”

            A respeito das mil e uma utilidades de tais cadernos, é o próprio Leonardo quem fala, segundo Isaacson:

“Um dos propósitos dos cadernos era o de registrar cenas interessantes, sobretudo aquelas envolvendo pessoas e emoções. “Conforme você andar pela cidade”, escreveu em um deles, “observe constantemente, faça anotações e analise as circunstâncias e o comportamento dos homens enquanto eles falam e discutem, ou riem, ou partem para as vias de fato”. Com isso em mente, Leonardo levava um caderninho pendurado no cinto.”








            Passados 500 anos, poder ver, olhar e reparar em um desses preciosos caderninhos – que viviam pendurados no cinto do homem – não é pouca coisa. Saber que ele não se interessava apenas por arte e ciência, mas também pelo comportamento das pessoas, isso engrandece ainda mais nossa admiração pelo gênio. Emociona como o diabo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019