terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Folhetim


FOLHETIM: Foi no tempo do Consulado e com o abade Geoffroy que apareceu o folhetim. Até então, as notícias literárias eram insertas no corpo do jornal. Ao instalar a sua crítica dramática no “rodapé” do Jornal dos Debates, Geoffroy atraiu para esta novidade a atenção dos leitores. Todos os jornais quiseram então ter o seu, e a voga do folhetim tornou-se tal que, no dia em que ele faltava, o jornal parecia vazio; encheu-se o vácuo com o romance-folhetim, tornado ilustre pelo espírito ou invenção de Eugénio Sue, Alexandre Dumas, e de seus sucessores, Ponson du Terrail, Xavier de Montépin, Emilio Richebourg, Julio Mery, etc. O romance-folhetim que prende e diverte o leitor, desempenha um grande papel, sobretudo na imprensa popular.
Lello Universal, Porto: Lello & Irmão editores, edição não datada.                                                                                                     


CAPÍTULO 1

A CABELEIREIRA

Eu me chamo Suzete, assim mesmo, com Z, sou cabeleireira para mais de 30 anos, e nunca tinha visto alguém tão triste.
Somos seis no salão. Entra uma, sai outra, de repente pipoca uma briga do caralho, a dona manda duas embora, ficamos sobrecarregadas, então entram duas novatas, temos que ensinar a elas tudo outra vez, um xarope. Eu, vou ficando. Mas eu gosto. Sou a única que corta cabelo de homem, levo jeito, os caras apreciam, às vezes fazem fila esperando por mim; eles não sabem que, no salão, só eu corto cabelo de homem, é segredo, e eu também não sou boba de contar. A dona pensa que é porque sou boa nisso.
Tem um outro segredo: gosto de escrever!, assim mesmo, com ponto de exclamação e tudo. Que gosto de ler, todo mundo sabe, pois entre um corte e outro, ou na hora do almoço, tiro meu livrinho da gaveta, me concentro na leitura, tanto tanto que se chega algum cliente, minhas colegas têm que me despertar, Acorda Suzete, acorda, elas sussurram em meu ouvido para não chamar a atenção da dona. Fecho o livro assustada, finjo que não é comigo, coloco o avental no cliente, mas só quando pego no pente e na tesoura é que saio da história que estava lendo e volto para o salão. Suzete metida a besta, dizem algumas que duram pouco no serviço e não chegam a me conhecer direito, quem eu sou de verdade, e o que são os livros em minha vida. E elas nem imaginam que também escrevo! (Estou com a mania da exclamação hoje.)
Escrevo à mão e com lápis. Aprendi com minha avó a fazer pontas com gilete, que tomo emprestada do salão. Ficam lindos os lápis apontados, só compro grafite macio, que desliza no papel delicada e silenciosamente, quase em segredo. São cadernos e mais cadernos, todos de capa dura, cada um de uma cor, o papel não é lá essas coisas, o lápis ajuda, não marca o verso da página.
Se eu copio? É claro que copio, quem não copia! Aquele Acorda Suzete aí em cima, com A maiúsculo para mostrar que se trata da fala de alguém fora de mim, copiei do Saramago. Dá para acreditar que uma cabeleireira lê Saramago? Pois leio, li tudo dele, fico na porta da livraria no dia de um  lançamento, o coração disparado, puro prazer: sou doida pelo homem. Então não vou imitá-lo?
O caralho lá no alto, colei do Marcelo Mirisola: sujeito desbocado aquele, adora um palavrão, que bem usado prega um susto danado na gente, não deixa o leitor dormir um minuto, fora outras excentricidades: Suzete Arrumou O Cabelo Para Mostrar No Shopping. (Puro plágio. Por que não?)
Esta conversa de que só deixo o livro e volto para o salão quando pego no pente e na tesoura, tirei do Proust (já sei, ninguém vai acreditar que uma cabeleireira está em busca do tempo perdido; em O Seminarista, do grande Rubem Fonseca, o matador profissional gosta de ler poesia, ele tem uma edição bilíngue do Petrarca; então?). Sabe o que acontece? (Dulcinéia, minha colega, inicia qualquer fala sempre com esta expressão: Sabe o que acontece?...) Pois é, eu sou romântica...
Agora, esse negócio de ficar enrolando, enrolando, antes de entrar na história principal, isso eu copio de todos. Gente que gosta de enrolar é o tal de Escritor. Acontece que é do que eu mais gosto, da enrolação, frases e mais frases para não dizer nada, lindamente, o som puro de cada palavra cantando, é música para minha alma; saio do salão e me perco na história. Difícil é voltar.
Preciso voltar, é meu ganha-pão, ou melhor dizendo, meu ganha-livro, que o vício – porque é um vício – leva todo meu dinheiro do mês, pior que cachaça.
Mas são apenas estes os meus gostos, os meus vícios: ler, escrever e cortar cabelo de homem. Por isso resolvi contar a conversa que tive com o homem mais triste que jamais vi. (Enfim, a história.). Era uma manhã de sábado ensolarada, o salão acabava de ser aberto, tirava da gaveta meu livrinho – Contos Fluminenses, de Machado de Assis, comprado em um sebo aqui perto, mas muito bem conservado, que não gosto de livro-caindo-aos-pedaços – quando o homem entrou. Bati os olhos nele e disse para mim mesma: tristíssimo. (Isso de superlativo eu copiei do Nelson Rodrigues, que eu amo de paixão!)
Não deu outra. Quando perguntei se queria o corte com máquina ou tesoura, respondeu Tanto faz; se preferia o pé reto ou arredondado, Tanto faz; se eu baixava bem o cabelo ou deixava mais cheinho, Tanto faz; quando engatilhei a quarta pergunta, ele bruscamente me interrompeu: Olha aqui, moça, não entendo nada disso, há mais de trinta anos que minha mulher corta meu cabelo e nunca me faz todas estas perguntas, ela apenas corta meu cabelo do jeito que ela gosta e sabe.
Havia uma tristeza de doer em seu tom de voz, a melancolia do fado, a dureza do granito, a morte do deserto. Acho que fiquei meio puta com aquilo; afinal, era a primeira vez que cortava o cabelo dele, desejava acertar, e não podia perguntar nada? Mandei bala: Então, por que não continua cortando com ela? É claro que falei baixinho, com educação, que a dona podia ouvir, olha eu sem dinheiro para comprar meus livros.
A resposta veio seca: Ela me deixou.



CAPÍTULO 2

PONTUAÇÃO: UM DELÍRIO

“Figuras de gramática, esquipáticas,
Atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
...
O português são dois; o outro, mistério.”

Carlos Drummond de Andrade
(Aula de português, Boitempo)

Me chamo Afonso e odeio reticências: puro preconceito, admito, em compensação tenho mania de dois-pontos, visto está, porque eles preparam o leitor para o que vem em seguida, uma espécie de abre-alas, a respiração suspensa, breve interrupção quando a leitura é feita em voz alta, que é a melhor maneira de se ler, podendo ouvir aquilo que se lê, mas gosto também de ponto-e-vírgula, porque o parágrafo não se fecha, sabe-se que vem mais coisa por aí, o que não  acontece com o ponto-final que abomino, por mim não se usava nunca, ponto-final só a morte, e escrita é coisa de gente viva, a menos que se considere a psicografia, escrita dos mortos, embora seja sempre necessário alguém muito vivo para empunhar lápis ou esferográfica, se o morto não exigir caneta-tinteiro, outra de minhas manias, como esta de gostar de pontuação, coisa que acho tão natural que nem aprecio ponto-de-exclamação, pra que?, ainda mais se posso me utilizar do sonoro pu-ta-que-o-pa-riu, empregado na hora certa e com devida entonação, cada sílaba retumbando fora e dentro da gente, na orelha e no miolo, porém indispensável é o ponto-de-interrogação, porque ele também não encerra o assunto, ao contrário, cutuca o leitor, é a vida que continua, com-amor-ou-sem-amor, com-beijo-ou-sem-beijo, com-hífen-ou-sem-hífen, que eu também gosto de hífen, visto está, ao juntar e separar, ao unir e dividir, uma surpresa em cada esquina, às vezes um susto que pega a gente desprevenido, o parágrafo que não acaba nunca em vez dessas frases curtinhas, pobrinhas, tão fáceis que até parecem de autoajuda, que não gosto mesmo de nada fácil, por isso ojerizo o tal Hemingway, bonzinho ele não era, caçador-de-feras, doido por uma tourada, é claro que o touro acaba sempre morrendo ingloriamente, ponto-final, visto está, pois foi ele que inventou esse negócio de frasezinhas curtas, uma mentira, pois os pontos-finais não findam nada, uma verdadeira crise de soluços, engasgos, espasmos, isso é que é, maneira de desfazer da inteligência do leitor, que emburrece, ao passo que o parágrafo-que-não-termina-nunca desasna o leitor, desobstrui neurônios, foi com Seu Afonso, o melhor professor que o mundo já viu, que aprendi: boa parte dos nossos neurônios nunca se abre, um desperdício, e ele puxava a brasa pra sardinha dele, nada melhor que a literatura para abrir neurônios, professor de português, visto está, uma exigência do cacete, contava décimos e centésimos na hora de tirar a média-final, 4,95 era reprovação certa, não tinha essa de aproximar pra 5, e mesmo não gostando de reticências, visto está, ele era o queridinho da escola, Seu-Afonso-pra-cá-Seu-Afonso-pra-lá, jogando charme pra cima das meninas, pra que exclamação numa hora dessas?, bastava o ciúme dos meninos que maldavam, despeitados, invejosos, birrentos, raiventos, bebês diante do pai-todo-poderoso, mesmo porque o cara era bom no que fazia: professor de escola secundária melhor que muito doutor em línguas de universidade, embora nenhum de nós houvesse um dia conhecido um tal doutor pra comparar, nem era preciso, a prova é esta minha mania de pontuação, visto está, e de leituras, é claro, obrigado que fui a ler Antonio Vieira, cada bruto sermão, aquelas palavras enrodilhando a cabeça da gente, dando voltas voltas voltas até tontear, vem daí meu desgostar de coisas fáceis, eu acho, e, quando cheguei ao José de Alencar, Iracema era sopa no mel, lambuzada de mel a enlouquecer os meninos quando aparecia em uma edição ilustrada, brochura barata, toda nuazinha, cabelos negros-lisos até a cintura, e a punheta corria solta, masturbação era o nome que a professora de religião, Dona Arminda, utilizava para condenar a prática em supostas aulas de educação sexual, visto está, mas a moçada não largava mão, não sem algum medo e culpa, pois fazia nascer cabelo na mão amarelada, era tuberculose na certa, a impotência futura, cegava se caísse no olho, era punheta punhete bronha meia-luva mitene confortante onanismo quiromania troca-de-óleo alívio, palavras proibidas em sala de aula, até que chegou o novo professor, comunista e desbocado, escandalizando logo-de-cara ao dizer em alto e bom som que o carro dele tinha cor-de-bosta, e, para fazer tremer a Instituição iniciou curso de russo, pra desespero de Seu Proença, professor de inglês, visto está, sujeitinho desagradável, perseguidor de aluno que fosse filho de família espírita ou protestante, ele, carolíssima, gabava-se de andar sempre com 4 lenços: um para limpar assento e mesa, outro para enxugar as mãos, mais um para assoar o nariz em caso de necessidade, um quarto, de bolinhas, para enfeitar o bolsinho do paletó, que ele nunca dispensava o terno cortado sob medida pelo Perrella alfaiate, fizesse chuva ou sol, coisa de veado, por trás troçava a rapaziada, que pela frente sempre enormíssimo respeito-temor, e, diante de tantas experiências lembranças histórias, como não tomar gosto por leituras?, como?, e, deu-no-que-deu, segui os passos do Seu Afonso e me tornei professor de português, sem mestrado nem doutorado, apenas este gosto despropositado pelas leituras, que a literatura pode salvar almas, este delírio sobre a pontuação, o parágrafo sem-fim, visto está, e ainda nem falei do travessão, do parêntese (“desvio momentâneo do assunto”, segundo Houaiss), das aspas, mas do que eu gosto mesmo – deixei pro final – é da vírgula, visto está,



CAPÍTULO 3

AFONSO CORTA O CABELO

– Vejo que você gosta de ler...
– Adoro, é a minha vida, ler, escrever e cortar cabelo de homem.
– E o quê você gosta e ler?
– Tudo, quer dizer, tudo que seja bom, desculpe, não quero parecer pretensiosa, não sou crítica literária, sou cabeleireira mas sei distinguir algo bem escrito de uma merda de autoajuda, desculpe outra vez, nem conheço o senhor e já vou falando merda, o que é que o senhor vai pensar de mim...
– Gostei de merda-de-autoajuda.
– Mesmo?
– Gostei, e sobre o quê você escreve?
– Tudo, ih! outra vez, quero dizer, tudo o que me vem à cabeça, até haicais ando ensaiando, estou aprendendo com Guilherme de Almeida e Millôr, mas por que o senhor está me perguntando essas coisas?
– É que também gosto de ler e escrever, sou professor de português.
– Mesmo?!
Segue-se um prolongado silêncio, apenas o ruído macio do pente sobre os cabelos, o tec-tec-tec da tesoura, algum embaraço indisfarçável, pois alguma coisa estava acontecendo, ambos sabiam disso, não sabiam o quê, Uma sincronicidade, diria Roque, amigo meu junguiano, daí o silêncio significativo daquele momento, Suzete, doida por leitura e escrita, Afonso, professor de português.
Enquanto durou o corte do cabelo, os dois conversaram sobre tudo que os loucos por literatura conversam, livros e livros e livros e autores e autores e autores, de vez em quando um filme baseado em algum livro, Você viu O nome da rosa do Humberto Eco?, Adorei, você viu Lavoura arcaica?, Vi, E gostou mais do livro do Raduan ou do filme?, O filme é ótimo mas gostei ainda mais do livro, Suzete embevecida, Afonso espantado, uma cabeleireira?!, um professor de português?!, Camões, Eça, Machado, Saramago, Shakespeare, alguma coisa estava acontecendo. Terminado o corte, saíram para almoçar. Pediram peixe, fisgados que se encontravam.
A conversa prosseguiu animadíssima, Afonso falou de um pequeno conto que acabara de publicar, um Delírio sobre a pontuação, o narrador obcecado por vírgula, dois pontos, ponto-e-vírgula, só não gostava de reticências e ponto-final, Suzete pediu para ler, aproveitou a deixa e falou da Oficina Literária que vinha frequentando, grupo formado por pessoas que também gostavam de ler e escrever, que se divertiam trocando ideias – e trocando de ideias, pois quem gostava de frases curtas passava a gostar de longos períodos, quem gostava de longos períodos passava a gostar de frases curtas –, comparavam Pe. Antonio Vieira com Marcelo Mirisola, Proust com Luiz Ruffato, Guimarães Rosa com Raimundo Carrero, Kafka com Marçal Aquino, sem falar dos textos dos próprios participantes do grupo, ninguém profissional mas todos muito empolgados, uma loucura, Afonso admiradíssimo, babando de inveja, Suzete explicou que fora convidada por um cliente, alguém que cortava o cabelo com ela, homem tristíssimo por sinal... Naquele exato momento, Suzete notou uma sombra no rosto de Afonso.
 Entrementes, casaram-se dois meses depois.



CAPÍTULO 4

LUA-DE-MEL

– Para quem não sabe, a expressão lua-de-mel nasceu no Oriente, mais precisamente na Babilônia, 2000 anos A.C. (nunca pensei que um dia ainda empregaria esta abreviatura tão chique), onde o pai da noiva oferecia mistura de água e mel aos noivos no período pré-nupcial, e como na época utilizavam o calendário lunar, ficou lua-de-mel. Consta que os romanos espalhavam mel na soleira da porta da casa onde os noivos iriam morar.
             Afonso gostava de ouvir a própria voz – ou não seria professor. Gostava também de Etimologia, consultava dicionários, tomava notas, acima de tudo apreciava a maneira pela qual Suzete ouvia suas aulas, ou não seria professor, visto está, ela compenetradíssima, ávida, extasiada, Mas minha versão preferida é quando você conta a lenda dos índios do Xingu, conta conta, Eles acreditavam que em noites de lua cheia, noites de acasalamento, gotejava mel da lua na genitália das mulheres, para que se tornassem ainda mais doces para seus amantes, Gosto disso porque sou romântica incurável, adoro José de Alencar...
– Você também?!, Afonso exclamou-quase-gritou-sem-pensar, arrependeu-se depois, ao lembrar-se da tal brochura ilustrada com Iracema nuinha em pelo, da sua juventude, das consequências, da sinonímia, tudo publicado no Delírio, calou-se a tempo, Suzete nem percebeu.
A lua-de-mel durou seis meses; viajaram, escolhiam sempre hotéis com alguma livraria por perto, nada de praia deserta, Programa de índio, brincava Suzete, Afonso consentia. Depois do almoço, esqueciam-se da vida no ar refrigerado de uma boa livraria, cada um saía com uma sacolinha de livros, e a leitura reiniciava logo que chegavam ao hotel. Combinavam em tudo, o que um lia o outro lia, conversavam, Veja isso aqui: “Desconfio que escrevo para alargar o sentido da vida”, é da Nélida Piñon, Lindíssimo, quando terminar o livro vou lê-lo, combinavam até no gosto pelo uso moderado do palavrão – achavam que o Mirisola exagerava – Na hora certa faz bem à saúde, emendava Afonso, com autoridade de professor, Suzete também gostava de um pu-ta-que-pa-riu, Na hora certa, na hora certa, reafirmava Afonso, O Diabo não tem lábio, tem beiço, e ela ria feliz da vida. Combinavam também no sexo; Suzete gostava de declamar Amor feinho, da Adélia Prado:
“Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
Não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
E filhos tem os quantos haja.”
Suzete gemia, gritava, um dia pediu pra apanhar, Afonso bateu com cuidado. A lua-de-mel durou seis meses.



CAPÍTULO 5

AFONSO E SUZETE VÃO AO SUPERMERCADO

Salário de professor sempre foi uma merda e Afonso teve que concordar que Suzete continuasse trabalhando. Ela protestou, não era só pelo dinheiro, Pois se é uma das três coisas que mais gosto nessa vida cortar cabelo de homem!, machismo bobo, coisa mais caipira, Não gosto, está acabado, Acabado uma ova, Suzete não era de baixar a crista por qualquer engrossamento de voz, imperava, batia o pé, ainda mais que salário de professor era mesmo uma merda. Essa foi a primeira briga feia.
Afonso era ciumento. Aquela história de cortar cabelo de homem ele não podia engolir; cabeleireira escrever tão bem, às vezes até melhor que um professor de português, vai lá, ele admitia não sem alguma relutância e incredulidade; ler Proust e Kafka, tudo bem, cada doido com suas manias; agora, frequentar Oficina de Literatura, isso não; e aquela história do homem triste?, história-mais-mal-contada, cliente?, Quem tem cliente é puta, Puta é a senhora sua mãe. As brigas, sempre por ciúme, acabavam na cama, entre juras de amor, mas Suzete notava, cada vez mais frequente, uma sombra no rosto de Afonso.
Até que, em numa manhã ensolarada de sábado, encontraram-se com o homem triste em um supermercado da cidade; Como vai, Suzete, Bem, e o senhor, deixa eu apresentar meu marido Afonso, Muito prazer, Prazer, conversaram sobre a Oficina, Afonso foi convidado a participar, Suzete me contou que o senhor é professor de português, se aceitar o convite terá muito trabalho conosco, fazendo-se de simpático o homem triste, de modesto, Afonso reparou, calou-se, uma sombra...
Ao chegarem em casa o pau comeu: alcouceira andorinha bagaço bagageira bagaxa, bandarra bandida barca bebena besta biraia bisca biscaia biscate bocetinha bofe boi bruaca bucho cação cadela cantoneira caterina catraia china clori cocote coirão cortesã courão couro cróia croque cuia culatrão dadeira dama decaída égua ervoeira fadista fêmea findinga frega frete frincha fuampa fusa galdéria galdrana galdrapinha ganapa horizontal jereba loba loureira lúmia madama madame marafa marafaia marafantona marafona marca mariposa menina meretrice messalina michê michela miraia moça moça-dama mulher-dama mulher-solteira mulher à-toa mulher-da-comédia mulher-da-rótula mulher- da-rua mulher-da-vida mulher-da-zona mulher-de-amor mulher-de-má-nota mulher-de-ponta-de-rua mulher-do-fado mulher-do-fandango mulher-do-mundo mulher-do-pala-aberto mulher-errada mulher-perdida mulher-pública mulher-vadia mundana murixaba muruxaba paloma pécora pega perdida perua piranha piranhuda pistoleira piturisca prostituta puta quenga rameira rapariga rascoa rascoeira reboque rongó solteira tapada tolerada transviada tronga vadia vaqueta ventena vigarista vulgívaga zabaneira zoina zorra.
De onde Afonso tinha tirado aquilo, meu deus do céu, a lista completa, até parece tirada do Houaiss, assim decoradinha em ordem alfabética, uma obsessão, verdadeira tara, sem falar da expressão de ódio em seu rosto, os olhos injetados Dele, a voz rouquenha do anhanga anhangá anhanguera arrenegado azucrim barzabu barzabum beiçudo belzebu berzabu berzabum berzebu bicho-preto bode-preto brazabum bute cafuçu cafute caneco caneta canheta canhim canhoto cão cão-miúdo cão-tinhoso capa-verde capeta capete capiroto careca carocho chavelhudo cifé coisa coisa-à-toa coisa-má coisa-ruim condenado coxo cramulhano cujo debo decho demo demonho demônio demontre diá diabinho diabrete diabro diacho diale dialho diangas diangras dianho diasco diogo dragão droga dubá éblis ele excomungado farrapeiro fate feio figura fioto fute futrico galhardo gato-preto grão-tinhoso guedelha indivíduo inimigo jeropari jurupari labrego lá-de-baixo lúcifer macacão macaco mafarrico maioral má-jeira maldito mal-encarado maligno malino malvado manfarrico mau mico mofento mofino moleque moleque-do-surrão não-sei-que-diga nem-sei-que-diga nico pé-cascudo pé-de-cabra pé-de-gancho pé-de-pato pé-de-peia pêro-botelho pedro-botelho peneireiro porco porco-sujo provinco que-diga rabão rabudo rapaz romãozinho sapucaio sarnento satã satanás satânico serpente sujo taneco temba tendeiro tentação tentador tição tinhoso tisnado zarapelho.
O leitor menos avisado pode pensar que o narrador está enrolando, Suzete alerta sobre isso, “Gente que gosta de enrolar é o tal de escritor”, mas um outro modo de ver as coisas é o do amor que aquele que escreve tem pelas palavras, para ele não basta o demônio, é preciso toda uma legião, cada palavra com seu significado e importância, a palavra sutil dita pelo meu jardineiro – analfabeto, por sinal – não é a palavra sutil pronunciada por qualquer outra pessoa deste mundo, é muito mais sutil.



CAPÍTULO 6

ROMANCE BRUTO

O jornal conta histórias, mentiras...
Ora afinal a vida é um bruto romance
e nós vivemos folhetins sem o saber.

Carlos Drummond de Andrade

            Suzete deixou de frequentar a oficina literária, não escrevia mais, lia muito pouco, já não pedia pra apanhar; agora, apanhava sem pedir. De seu tempo de solteira, conservava apenas o gosto por cortar cabelo de homem, mas em casa não podia falar de clientes, muito menos do homem triste, que, vez por outra, aparecia no salão, cada vez mais triste.
            Em uma tarde quente de sábado, depois de uma feijoada completa, cervejas e batidas, toca o celular de Suzete, era uma colega do salão, com a notícia:
            – O homem triste morreu.
            – Como?, Suzete incrédula.
            – Morreu do coração, é o que dizem.
            – Quando?
            – Ontem à noitinha. Quando o socorro chegou, era tarde demais.
            – Meu Deus...
            Suzete não pôde conter a emoção, desatou num choro convulso, incontrolável, afogava-se em lágrimas.
            – Bem que ele me disse que não queria mais viver, que havia perdido o gosto pela vida, Mas como isso é possível?, perguntei a ele outro dia, e ele, É tudo muito simples, apenas não quero mais viver, só isso, sem mágoa, sem rancor, quase sem dor, Suzete repetia agora essas palavras desatinada, Apesar da tristeza dele, eu o amava, nunca vi alguém tão gentil, tão amoroso, foi ele quem me levou para a oficina, conversávamos conversávamos conversávamos, porque ele adorava conversar – descobri mais tarde –, dava gosto ouvi-lo falar sobre literatura, sobre o sentido das palavras, de cada palavra, de sua predileção por longos períodos, de preferência os que ocupavam várias páginas, sem ponto final, sobre o sentido da vida, ou, como ele gostava de dizer, da falta de sentido da vida, e Suzete chorava chorava chorava.
Recostada no sofá da sala, com o rosto encoberto pelo lenço encharcado de tristeza e dor, Suzete nem percebeu que Afonso, a seu lado, tudo ouvia, mudo, estarrecido, uma sombra a encobrir seu rosto. Afonso não pôde pensar;  levantou-se, tomou de uma almofada, ajoelhou-se sobre a mulher, asfixiou-a.
            Afonso olha para o corpo estendido no sofá e diz:
– É tarde demais.




FIM





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