terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Carta a Débora, março de 2001


Carta à amiga Débora.
Brasília, março de 2001.

Querida Débora,

nem te conto!
Sabe quem apareceu hoje no Salão? Claro que você não sabe, né, pois estou contando agora, você é a única pessoa a quem posso escrever estas coisas, peço que guarde segredo.
Um tal de Afonso!
Você precisa ver que conversa gostosa, ele professor de Português, a fala macia, educadíssimo, e bonito ainda por cima, alto, espadaúdo, o sorriso largo. Você há de pensar que estou exagerando, com essa minha mania de ler romances, A cabeça sempre nos livros, como dizem minhas colegas de trabalho. Exagero não, juro!
Quando ele entrou eu lia Machado de Assis: coloquei o livro sobre o balcão mas ele logo percebeu, Vejo que gosta de ler..., Adoro, é a minha vida, ler, escrever e cortar cabelo de homem, fui logo dizendo, e ele me olhou espantado, como quem diz, Uma cabeleireira?
Pois é, puta preconceito este, minha vida toda sofri com ele, as pessoas pensam que toda cabeleireira é burra, e burra eu sei que não sou. Outro dia fui a uma dessas lojas de utensílios domésticos, puxei papo com a vendedora, que me contou que estava lendo Proust, Em busca do tempo perdido, imagine você. Achei o máximo! Então. Não posso?
Às tantas ele perguntou do que eu gostava de ler, e foi aí que dei o maior fora, Débora, Tudo que é bom, menos essa merda de autoajuda, respondi. Que vergonha, meu Deus, nem conhecia o homem e já soltava um palavrão. Pedi desculpas, depois me arrependi, se você quer saber. Nada tenho contra o palavrão, ao contrário, dito na hora certa e com a devida entonação, ele é insubstituível. Conheci um professor que dominava a arte de falar palavrões. Quando ele percebia que aula começava a ficar chata, ou via um aluno querendo dormir ao fundo da sala, lascava um retumbante puta-que-pariu, era todo mundo pulando nas cadeiras, aquele espanto geral, alguns riam, outros assustavam-se, ninguém ficava indiferente. Em inglês não se diz palavrão, eles dizem taboo word, o que eu acho lindinho, não desmerece a palavra, não há nada de feio com ela, sem julgamento, se você quer saber. É só tabu.
Mas já nem sei por quê estou a lhe escrever sobre isso, Débora. Ah! foi a merda que falei para o professor e depois me arrependi, por pedir desculpas. Acho que eu estava um pouco nervosa. Mas você sabe que ele até gostou, porque também odeia autoajuda.
Sabe, Débora, acho que impressionei o professor quando disse que minha autoajuda era escrever. Minha terapia: ler e escrever e cortar cabelo de homem. Depois te conto no que deu, se é que vai dar em alguma coisa esse encontro com o tal professor.
Beijos da sua amiga de sempre,
Suzete

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