segunda-feira, 15 de julho de 2013

4. Motivação inicial


O congresso era de cirurgiões, o ano de 1979, mais de 3.000 participantes, todos cirurgiões, e eu nunca soube de quem foi a ideia de convidar aquela mulher estranha para uma conferência com título mais estranho ainda: “Sobre a morte e o morrer”. Os que ali estavam tinham como objetivo a cura das doenças cirúrgicas, buscavam as novidades tecnológicas, todo tipo de avanço científico nas respectivas especialidades, tudo e todos caminhando na direção de salvar vidas, ou pelo menos prolongá-las até onde fosse possível, enfim, todos a favor da Vida, de modo que falar de Morte naquele momento parecia algo incompreensível, inconcebível mesmo, sem qualquer sentido, como nadar contra a maré, naquele ambiente povoado de semideuses.
Por uma razão que nunca pude elucidar fui à conferência e sentei-me numa das primeiras filas, muito atento ao que poderia surgir de novidade, diante do instigante título. Algum avanço científico?, perguntei-me. Apresentada pelo presidente da mesa, subiu ao enorme palco do grande auditório do Anhembi uma mulher esquálida, miúda – assim me parecia –, envelhecida, pálida, os cabelos de cor indefinida, vestindo uma bata branca que lhe chegava aos pés, mas logo que tomou do microfone, contrariando aquela aparência, expressou-se com voz firme e segura. Começou por relatar sua experiência com os chamados pacientes terminais, especialmente crianças portadoras de câncer, atendidas por ela e sua equipe de psicólogos em Chicago, nos Estados Unidos. Não me lembro por quanto tempo ela falou, mas me lembro muito bem que, enquanto meu colega ao lado dormia a sono solto, eu me encontrava literalmente em lágrimas ao final da conferência. Acabara de ouvir – soube mais tarde –, ninguém menos que a Dra. Elisabeth Kübler-Ross. E a frase que me ficou gravada na memória foi “O processo de morrer é a experiência mais rica que se pode ter nesta vida”.
Ao final, poucos ainda permaneciam no auditório para aplaudir a conferencista. Meu colega acordou, desorientado e meio sem graça, não sei se percebeu como eu havia sido afetado pelo que acabara de ouvir. Penso que não, e desde então tem sido solitário o caminho percorrido na busca de compreender o que Kübler-Ross chamou de “o processo de morrer”.
O segundo momento desta busca ocorreu logo que retornei ao trabalho, com as ideias que acabara de ouvir ainda muito vivas. Atendi no ambulatório do Hospital de Sobradinho, hospital da Universidade de Brasília naquela época, o paciente, de nome Geraldo, e o aprendizado com a experiência descrita acima, esta sim, acarretou profunda mudança em minha vida e no meu modo de exercer a Medicina.
No mesmo dia da conversa descrita no capítulo anterior, à tarde, Geraldo obteve alta, aparentando profundíssima tristeza. Meu estado de espírito não era diferente, e uma série de dúvidas me torturava: Foi certo o que eu fiz?, Fiz do modo correto?, O tempo foi adequado para a notícia tão pesada?, E se ele se suicidar?
Havia me acompanhado em todo o processo um sextoanista de medicina de nome Walter, e combinamos que no dia seguinte, sábado, pela manhã, iríamos à casa do paciente. Foi outro tremendo choque, paupérrimo a moradia em que viviam Geraldo, a mãe idosa e uma irmã de 10 anos. Havia um barracão de madeira, dividido por tapumes em quatro partes, cada uma delas ocupada por uma família. Fomos convidados a entrar no barraco, o clima era de morte, o silêncio entrecortado por um oferecimento de café servido em caneca de lata. Bebemos em silêncio. Como está se sentindo? Mais ou menos, doutor. A mãe começou a chorar. A menina de olhos arregalados. Compreendemos então que a conversa que tivemos com Geraldo fora repassada à família. Saímos, depois de pouco menos de uma hora, completamente desolados.
No sábado seguinte voltamos à casa de Geraldo, depois de uma semana tormentosa, as dúvidas todas agora multiplicadas, pelo que vimos na última visita. Logo que chegamos, para enorme surpresa nossa, fomos recebidos com um largo sorriso nos lábios pelos três membros da família. Rapidamente convidados a entrar, recebemos o café na mesma canequinha de lata, mas o tom da conversa agora era outro, animado, quase de festa. Perplexos, eu e Walter não podíamos compreender o sentido daquela mudança. Foi quando Geraldo começou a relatar os acontecimentos do domingo anterior, em que recebera a visita de familiares vindos da redondeza, e a todos eles, além de falar sobre seu diagnóstico, contou que recebera no dia anterior a visita de seus médicos, Vejam vocês, os doutores vieram à minha casa, vieram saber como eu estava passando, preocupados comigo, vejam vocês! Doutor, ninguém chorou com a notícia, eles sabem que o senhor vai cuidar de mim!

 Acompanhamos ambulatorialmente o pós-operatório tardio de Geraldo. As complicações do câncer gástrico avançado e inoperável não tardaram a aparecer. A perda de peso acentuou-se, surgiu ascite (grande acúmulo de líquido na cavidade abdominal) em decorrência das metástases peritoneais, vômitos frequentes, até que decidimos interná-lo para a retirada da ascite e facilitar a respiração. Em função das precárias condições sociais, mantivemos o paciente internado. Como o hospital ficava em uma cidade satélite de Brasília, lá passávamos todo o dia, até o final da tarde, o que permitia que conversássemos com ele várias vezes ao dia. Sua piora deu-se rapidamente. Certa manhã, ao entrar na enfermaria de seis leitos onde ele se encontrava, encontrei Walter, que vinha saindo, Ele entrou em coma. Geraldo estava deitado de costas para mim e não respondeu ao meu chamado. Chamei uma auxiliar de enfermagem e solicitei que fosse colocado um biombo em torno do leito, para que não ficasse exposto aos demais pacientes. Deixei a enfermaria muito emocionado e entrei para o centro cirúrgico, para uma operação demorada. Ao sair, Walter me esperava com o seguinte relato:
– No meio da manhã ele acordou, viu o biombo em volta do leito e disse Dr. André está me isolando. Morreu poucos minutos depois.
            A sensação era a de que eu fizera o certo até o último momento, mas que falhara ao final. Talvez precisasse do erro para ter a consciência da dimensão do que significava o tal processo de morrer.

2 comentários:

  1. Do pouco que li de Saramago, já consigo identificá-lo presente na sua escrita.

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  2. Sensação de falha, ao final? Nao vejo assim. O moribundo apenas expressou sua solidão, no momento supremo. E quanto a essa solidão, nao há o que se possa fazer. O momento da morte é também o da maior solidão que se pode conceber, absoluta e necessária. Nao era físico o biombo, era espiritual.

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