segunda-feira, 15 de julho de 2013

3. Doutor, o que eu tenho?


– Doutor, o que eu tenho?
            Nem bem acabara de ouvir as queixas de Geraldo e examiná-lo, quando ele disparou a pergunta Doutor, o que eu tenho? Nada de tão extraordinário, parece até uma pergunta óbvia face a natural ansiedade de qualquer pessoa doente, a não ser por um detalhe. Encaminhado por um colega gastroenterologista, ele trazia consigo, em envelope fechado, o laudo de uma biópsia realizada através de endoscopia digestiva com o diagnóstico de câncer do estômago; e a mensagem que eu acabara de ouvir de Elisabeth Kübler-Ross era taxativa, Não minta ao seu paciente.
            – Vou interná-lo, vamos fazer mais alguns exames, e então saberemos o que você tem, Geraldo; assim poderei informá-lo com segurança, esteja certo de que vou informá-lo. Foi tudo o que pude dizer naquele momento, mas já antevendo uma série de dificuldades emocionais de minha parte, despreparado que me encontrava para conduzir relação tão complexa.
            Para que o leitor possa compreender melhor o contexto em que tais fatos ocorreram, é preciso dizer que até o início da década de 80 os médicos, em sua grande maioria, não revelavam claramente aos seus pacientes o verdadeiro diagnóstico. Usavam comumente de eufemismos como “uma inflamação no estômago”, “uma massa” em tal órgão, uma série de piedosas mentiras, enfim, certos de que protegiam seus pacientes do risco de uma depressão, ou até mesmo do suicídio. Menos provável é que pudessem admitir a própria dificuldade e despreparo para tratar do assunto Morte.
            Geraldo foi internado, os exames pré-operatórios realizados, marcada a operação, e minutos antes do início da anestesia, ele me olhou com determinação e disse Doutor, o senhor prometeu que vai me dizer a verdade.
            A operação foi um fracasso completo. Havia um enorme tumor maligno no estômago, invadindo órgãos vizinhos e toda a cavidade abdominal, de modo que nada pôde ser feito. Ao acordar, já na recuperação, Geraldo, ainda confuso pelo efeito da anestesia geral, repetiu a pergunta Doutor, agora o senhor já sabe o que eu tenho?
            Mais uma vez minha resposta foi evasiva, Não podemos conversar agora, você precisa recuperar-se completamente dos efeitos da anestesia, depois então conversamos. Ficava cada vez mais clara a minha dificuldade em encontrar a melhor forma de lhe dizer a verdade, já que eu estava determinado a fazê-lo.
            No dia seguinte minha ansiedade manifestou-se assim que acordei. O hospital ficava a pouco mais de 30 Km do Plano Piloto, em Brasília, na cidade satélite de Sobradinho. Aquela pequena viagem cotidiana era sempre um momento de reflexão sobre o trabalho, sobre as dificuldades do dia, as operações a serem executadas, as aulas ministradas, sobre a vida enfim, mas naquele dia o assunto era como conversar com Geraldo acerca de sua doença. Assim que me viu entrar na enfermaria repetiu a pergunta Agora podemos conversar, doutor? Respondi com visível irritação, Geraldo, virei vê-lo em seu leito pelo menos três vezes ao dia, conversaremos sobre tudo, mas não me faça mais esta pergunta. Deixe isso comigo. Assim que entender que você está em condições de conversar sobre sua doença, eu mesmo vou chamá-lo. Concorda comigo?
            Geraldo não teve outra alternativa senão concordar. E assim transcorreu a semana de pós-operatório, felizmente sem qualquer complicação. Pudemos nos conhecer um pouco mais, conversávamos sobre tudo, fiquei sabendo que ele era solteiro, morava com a mãe idosa e uma irmã de 10 anos de idade em Planaltina, cidadezinha bem próxima de Sobradinho, e que era pintor de parede. Seus rendimentos mal davam para pagar o barraco alugado e sustentar a mãe e a irmã. No sétimo dia depois da operação convidei-o para conversar.
            – Você ainda deseja saber sobre sua doença?
            – Claro, doutor! O que eu tenho?
            – Você tem um tumor no estômago.
            – E o senhor tirou o tumor?
– Não pude tirá-lo, Geraldo.
– Por que?
– Ele invadia outros órgãos, e portanto não poderia mais ser removido.
            Seguiu-se um longo silêncio, cortado pela curta e dura pergunta:
            – É câncer, doutor?
– É sim, Geraldo.
Depois de alguns minutos de silêncio, ele começou a chorar baixinho. Eu, segurei meu choro na garganta.

Um comentário:

  1. O medico se comove com a dor do seu paciente. Por que? Porque entre os dois existe apenas uma tênue " camada de destino"...

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