sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O louco da aldeia


O que mais surpreendia o menino era a atitude do pai, homem conhecido por sua rigidez, pelos julgamentos rigorosos, e que abria a porta de casa e recebia, até com certa gentileza, Heitor, o louco da aldeia. O pai não abria a porta da casa para qualquer um. Para ser mais preciso, o pai rarissimamente abria a porta da casa para alguém. Fazia-o, às vezes, por obrigação, nunca por gosto, pressionado pela mulher, Deixa de ser bicho do mato, homem. Se não frequentava a casa dos pouquíssimos amigos que tinha, se é que podia chamá-los amigos, colegas talvez, com que direito pensavam eles que podiam importuná-lo em seu próprio lar? Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz, não cansava de repetir.
Mas não era um bronco, o pai. Aquela mania de utilizar-se de ditados, provérbios, adágios, anexins e afins, adquiriu-a com a leitura atenta de Cervantes, da admiração profunda pelo Dom Quixote e seu escudeiro fiel. Possuía edição riquíssima do Engenhoso Fidalgo, em quatro volumes encadernados em couro, gravados com letras douradas e ilustrações de Gustave Doré, um verdadeiro tesouro, o orgulho de sua biblioteca. A torto e direito, sem quê nem porquê, lá vinha o pai com Tantas vezes vai o pote à fonte que um dia ele se quebra, Falar é prata, calar é ouro, Mais vale um pássaro na mão... Tampouco era ingênuo, o pai. Extremamente religioso, a tal rigidez e o isolamento social eram provenientes muito mais de uma austera retidão moral, Este é um mundo de expiações e provas!, resumia.
O menino não dispunha de palavras precisas, sutis, sofisticadas para analisar o pai e definir-lhe a personalidade, mas era dotado de agudo senso de observação, além de um genuíno e precoce poder de reflexão sobre a natureza humana. Intrigava-o, portanto, aquela relação do pai com Heitor, o louco da aldeia. O homem assustava até pelo porte físico, enorme, mais de 140 Kg de peso, pletórico, atarracado, ao andar adernava com pernas e braços abertos, buscando o difícil ponto de equilíbrio, a cabeça enterrada no tronco sem pescoço, o que talvez explicasse a voz cavernosa saída diretamente dos pulmões para a boca e a respiração ofegante e ruidosa a sugerir alguma obstrução respiratória, o cabelo cortado rente à escovinha ressaltando a cabeçorra redonda como uma bola de futebol. Impressionava mais que tudo a cor dos olhos, sempre arregalados, de um azul-água quase transparente. Eram doces os olhos de Heitor.
A fala era rápida, entrecortada por soluços e engasgos, as palavras saiam comidas pela metade, Trouxe uns diamantes da minha fazenda para o senhor, disse Heitor assim que entrou na pequena varanda. O pai agradeceu amável, Muito obrigado, Heitor, são lindos!, e recolheu as quatro pedras roliças, lisas, dessas que se encontram no leito dos rios, cada uma pesando cerca de meio quilo, Vou guardar os diamantes com carinho, São da minha fazenda na Mantiqueira, Ah!, você tem uma fazenda na serra?, Tenho cinco mil e quinhentos alqueires de terra muito boa, tudo plantado de café, estou exportando café, Que interessante!, café plantado nas alturas dizem que é do bom, Além da mina de diamantes, foi de lá que tirei esses aí, Ah!... A exclamação do pai deixava transparecer a maior sinceridade possível.
E a conversa prosseguia animada, o menino assustado entreolhando pela fresta da porta, tão perplexo com as pedras quanto com a solicitude e a aparente credulidade do pai. Serão mesmo diamantes?, chegou a pensar, E se os diamantes estiverem no miolo das pedras, que precisam ser quebradas para revelar o tesouro? O menino começou a duvidar de tudo, de todos, dele próprio, e delirou diante daquela estranha e incompreensível realidade.
Heitor despediu-se, o pai entrou carregando as pedras, sorridente, bem humorado, e percebeu o ar interrogativo do filho, ar de aflição mesmo, e tranquilizou-o, É o Heitor Louco, meu filho, mês que vem ele volta com mais diamantes, e jogou as pedras no fundo do quintal. Mais não disse, nem lhe foi perguntado.
Muitos anos se passaram, o menino tornou-se homem, e aprendeu que não se desmente uma alucinação, pois para quem alucina, aquela é uma verdade inquestionável. O pai, de alguma forma, intuíra o conceito de realidade psíquica, algo que embora não seja concreto, nem por isso deixa de ser real.

2 comentários:

  1. Voltando a infância... Nossos primeiros contatos com a loucura. Entre o pai e o louco, um tênue véu de separação.

    ResponderExcluir
  2. Que narrativa bonita, André!
    Acabei de descobrir como o meu mundo se encaixa nesse "conceito de realidade psíquica"...

    ResponderExcluir