O que mais surpreendia o menino era a atitude do pai,
homem conhecido por sua rigidez, pelos julgamentos rigorosos, e que abria a
porta de casa e recebia, até com certa gentileza, Heitor, o louco da aldeia. O
pai não abria a porta da casa para qualquer um. Para ser mais preciso, o pai
rarissimamente abria a porta da casa para alguém. Fazia-o, às vezes, por
obrigação, nunca por gosto, pressionado pela mulher, Deixa de ser bicho do
mato, homem. Se não frequentava a casa dos pouquíssimos amigos que tinha, se é
que podia chamá-los amigos, colegas talvez, com que direito pensavam eles que
podiam importuná-lo em seu próprio lar? Boa romaria faz quem em sua casa fica
em paz, não cansava de repetir.
Mas não era um bronco, o pai. Aquela mania de utilizar-se
de ditados, provérbios, adágios, anexins e afins, adquiriu-a com a leitura
atenta de Cervantes, da admiração profunda pelo Dom Quixote e seu escudeiro
fiel. Possuía edição riquíssima do Engenhoso Fidalgo, em quatro volumes
encadernados em couro, gravados com letras douradas e ilustrações de Gustave
Doré, um verdadeiro tesouro, o orgulho de sua biblioteca. A torto e direito,
sem quê nem porquê, lá vinha o pai com Tantas vezes vai o pote à fonte que um
dia ele se quebra, Falar é prata, calar é ouro, Mais vale um pássaro na mão...
Tampouco era ingênuo, o pai. Extremamente religioso, a tal rigidez e o
isolamento social eram provenientes muito mais de uma austera retidão moral, Este
é um mundo de expiações e provas!, resumia.
O menino não dispunha de palavras precisas, sutis, sofisticadas
para analisar o pai e definir-lhe a personalidade, mas era dotado de agudo
senso de observação, além de um genuíno e precoce poder de reflexão sobre a
natureza humana. Intrigava-o, portanto, aquela relação do pai com Heitor, o
louco da aldeia. O homem assustava até pelo porte físico, enorme, mais de 140
Kg de peso, pletórico, atarracado, ao andar adernava com pernas e braços abertos,
buscando o difícil ponto de equilíbrio, a cabeça enterrada no tronco sem
pescoço, o que talvez explicasse a voz cavernosa saída diretamente dos pulmões
para a boca e a respiração ofegante e ruidosa a sugerir alguma obstrução
respiratória, o cabelo cortado rente à escovinha ressaltando a cabeçorra
redonda como uma bola de futebol. Impressionava mais que tudo a cor dos olhos,
sempre arregalados, de um azul-água quase transparente. Eram doces os olhos de
Heitor.
A fala era rápida, entrecortada por soluços e engasgos,
as palavras saiam comidas pela metade, Trouxe uns diamantes da minha fazenda
para o senhor, disse Heitor assim que entrou na pequena varanda. O pai
agradeceu amável, Muito obrigado, Heitor, são lindos!, e recolheu as quatro
pedras roliças, lisas, dessas que se encontram no leito dos rios, cada uma
pesando cerca de meio quilo, Vou guardar os diamantes com carinho, São da minha
fazenda na Mantiqueira, Ah!, você tem uma fazenda na serra?, Tenho cinco mil e quinhentos
alqueires de terra muito boa, tudo plantado de café, estou exportando café, Que
interessante!, café plantado nas alturas dizem que é do bom, Além da mina de
diamantes, foi de lá que tirei esses aí, Ah!... A exclamação do pai deixava
transparecer a maior sinceridade possível.
E a conversa prosseguia animada, o menino assustado
entreolhando pela fresta da porta, tão perplexo com as pedras quanto com a
solicitude e a aparente credulidade do pai. Serão mesmo diamantes?, chegou a
pensar, E se os diamantes estiverem no miolo das pedras, que precisam ser
quebradas para revelar o tesouro? O menino começou a duvidar de tudo, de todos,
dele próprio, e delirou diante daquela estranha e incompreensível realidade.
Heitor despediu-se, o pai entrou carregando as pedras,
sorridente, bem humorado, e percebeu o ar interrogativo do filho, ar de aflição
mesmo, e tranquilizou-o, É o Heitor Louco, meu filho, mês que vem ele volta com
mais diamantes, e jogou as pedras no fundo do quintal. Mais não disse, nem lhe
foi perguntado.
Muitos anos se passaram, o menino tornou-se homem, e
aprendeu que não se desmente uma alucinação, pois para quem alucina, aquela é uma
verdade inquestionável. O pai, de alguma forma, intuíra o conceito de realidade
psíquica, algo que embora não seja concreto, nem por isso deixa de ser real.
Voltando a infância... Nossos primeiros contatos com a loucura. Entre o pai e o louco, um tênue véu de separação.
ResponderExcluirQue narrativa bonita, André!
ResponderExcluirAcabei de descobrir como o meu mundo se encaixa nesse "conceito de realidade psíquica"...