segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A bondade de maria


Embora maria tenha lavado minhas fraldas quando nasci, pois não as havia descartáveis naquela época, no mês de janeiro mais chuvoso de que se tem notícia até os dias de hoje na Capital, a primeira lembrança que tenho dela data de nossa mudança para a casa vizinha à casa de meus avós no Interior e eu já era um menino crescidinho, e maria era a empregada de Breno e Ceci, desde sempre, salvo antes de ela chegar à casa de meus avós, e aí residia o mistério!
maria era a cozinheira e a cozinha o seu reino. Lá ela mandava e desmandava, escolhia cuidadosamente os ingredientes no mercado municipal, carnes, verduras, legumes, frutas, os mais variados temperos, incluindo a pimenta malagueta, a indispensável banha de porco que emprestava todo o sabor às comidas, estipulava ela mesma o cardápio, às quartas pastel de queijo, carne, palmito ou frango, sua especialidade, embora não fossem menos apreciados o torresmo, o feijão mulatinho temperadíssimo, o bife acebolado às segundas, o frango ao molho pardo às quintas-feiras, o arroz soltinho todo santo dia. Manjar de coco com ameixas, a sobremesa preferida da avó. No verão, sorvete de abacaxi! As refeições encerravam-se infalivelmente com o cafezinho de coador, forte, perfumado, saboroso, entregue ao avô adoçado e mexido, em xicrinha de porcelana, por Ceci, um doce de mulher.
Não havia quem desconhecesse a infinita bondade de maria. Analfabeta, pobre, meio índia, quase sempre coberta de andrajos, porém boníssima, paradoxalmente boníssima... Chaninho, o seu gato predileto, com tinturas de angorá; havia outros, inúmeros, iam aparecendo e desaparecendo com o tempo, apenas Chaninho permanecia, fiel como um cão, proprietário. maria os alimentava a todos com iscas de carne de primeira, aquela que seria servida no almoço, para desespero de Ceci, econômica ao extremo. Mas quando alguma gata de rua dava cria, maria pegava todos os filhotinhos, enfiava-os num saco com uma pedra, jogava da ponte bem no meio da correnteza do Ribeirão dos Alves.
- Coitadinhos, não terão o que comer, alegava.
Além da bondade, o cigarro de palha de fumo-de-rolo forte, fedorento, grosso, longo, enorme para que durasse todo o dia, que se não estava no canto da boca desdentada repousava atrás da orelha sempre à mão, era a outra indefectível marca de maria. À noite, no silêncio do infecto porão sem janelas onde dormia em um catre imundo, maria acendia o terceiro cigarro do dia; acompanhava o pito a tosse violenta, catarrenta, constante, cansativa, maligna, e que anos mais tarde a levaria à horrorosa morte enfisemática.
Apenas uma vez vi maria derramar lágrimas copiosas, ela uma pessoa boníssima e feliz, alegre e risonha por natureza. Foi quando Otília a repreendeu severamente por não ter impedido que Beatriz, a filha mimada, brincasse de pular sobre um copo de vidro, de-lá-pra-cá-daqui-pra-lá interminavelmente, E se Beatriz caísse sobre o copo e o copo se quebrasse?, gritou Otília, histérica, maria sentidíssima, mas a bondade dela a impedia de compreender essas coisas, essas interdições, tudo aquilo que não fosse o desejo do outro, não o dela, que desejos ela não os tinha, parece que nem sabia o que era desejar.
            Todavia, havia um mistério. Não se falava uma palavra sobre o passado de maria, mais um dos assuntos proibidos em casa dos avós, discretíssimos sempre, também por natureza.
            Muitos anos mais tarde ouvi o comentário vindo de Otília de que maria era filha bastarda de um irmão de meu avô, que então tomou a guarda da menina maria, aquela desvalida de lendária infinita bondade, minha segunda mãe. Hoje sei, sou filho de maria.

(Publicado em 47 cenas de um romance familiar.)

Um comentário:

  1. Abnegação: virtude rara que você conseguiu pintar com invulgar engenho e arte.
    Congratulações literárias, amigo André!

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