Embora
maria tenha lavado minhas fraldas quando nasci, pois não as havia descartáveis
naquela época, no mês de janeiro mais chuvoso de que se tem notícia até os dias
de hoje na Capital, a primeira lembrança que tenho dela data de nossa mudança
para a casa vizinha à casa de meus avós no Interior e eu já era um menino
crescidinho, e maria era a empregada de Breno e Ceci, desde sempre, salvo antes
de ela chegar à casa de meus avós, e aí residia o mistério!
maria
era a cozinheira e a cozinha o seu reino. Lá ela mandava e desmandava, escolhia
cuidadosamente os ingredientes no mercado municipal, carnes, verduras, legumes,
frutas, os mais variados temperos, incluindo a pimenta malagueta, a
indispensável banha de porco que emprestava todo o sabor às comidas, estipulava
ela mesma o cardápio, às quartas pastel de queijo, carne, palmito ou frango,
sua especialidade, embora não fossem menos apreciados o torresmo, o feijão
mulatinho temperadíssimo, o bife acebolado às segundas, o frango ao molho pardo
às quintas-feiras, o arroz soltinho todo santo dia. Manjar de coco com ameixas,
a sobremesa preferida da avó. No verão, sorvete de abacaxi! As refeições
encerravam-se infalivelmente com o cafezinho de coador, forte, perfumado,
saboroso, entregue ao avô adoçado e mexido, em xicrinha de porcelana, por Ceci,
um doce de mulher.
Não
havia quem desconhecesse a infinita bondade de maria. Analfabeta, pobre, meio
índia, quase sempre coberta de andrajos, porém boníssima, paradoxalmente
boníssima... Chaninho, o seu gato predileto, com tinturas de angorá; havia
outros, inúmeros, iam aparecendo e desaparecendo com o tempo, apenas Chaninho
permanecia, fiel como um cão, proprietário. maria os alimentava a todos com
iscas de carne de primeira, aquela que seria servida no almoço, para desespero
de Ceci, econômica ao extremo. Mas quando alguma gata de rua dava cria, maria
pegava todos os filhotinhos, enfiava-os num saco com uma pedra, jogava da ponte
bem no meio da correnteza do Ribeirão dos Alves.
- Coitadinhos,
não terão o que comer, alegava.
Além
da bondade, o cigarro de palha de fumo-de-rolo forte, fedorento, grosso, longo,
enorme para que durasse todo o dia, que se não estava no canto da boca
desdentada repousava atrás da orelha sempre à mão, era a outra indefectível marca
de maria. À noite, no silêncio do infecto porão sem janelas onde dormia em um
catre imundo, maria acendia o terceiro cigarro do dia; acompanhava o pito a
tosse violenta, catarrenta, constante, cansativa, maligna, e que anos mais
tarde a levaria à horrorosa morte enfisemática.
Apenas
uma vez vi maria derramar lágrimas copiosas, ela uma pessoa boníssima e feliz,
alegre e risonha por natureza. Foi quando Otília a repreendeu severamente por
não ter impedido que Beatriz, a filha mimada, brincasse de pular sobre um copo
de vidro, de-lá-pra-cá-daqui-pra-lá interminavelmente, E se Beatriz caísse
sobre o copo e o copo se quebrasse?, gritou Otília, histérica, maria
sentidíssima, mas a bondade dela a impedia de compreender essas coisas, essas
interdições, tudo aquilo que não fosse o desejo do outro, não o dela, que
desejos ela não os tinha, parece que nem sabia o que era desejar.
Todavia, havia um mistério. Não se
falava uma palavra sobre o passado de maria, mais um dos assuntos proibidos em
casa dos avós, discretíssimos sempre, também por natureza.
Muitos anos mais tarde ouvi o
comentário vindo de Otília de que maria era filha bastarda de um irmão de meu
avô, que então tomou a guarda da menina maria, aquela desvalida de lendária
infinita bondade, minha segunda mãe. Hoje sei, sou filho de maria.
Abnegação: virtude rara que você conseguiu pintar com invulgar engenho e arte.
ResponderExcluirCongratulações literárias, amigo André!