segunda-feira, 17 de maio de 2021

Na estrada



 
Estrada

 

Esta estrada onde moro, entre duas voltas 

                                               [do caminho,

Interessa mais que uma avenida urbana.

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda 

                                               [a gente.

Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a 

                                               [sua alma.

Cada criatura é única.

Até os cães.

Estes cães da roça parecem homem 

                                                [de negócios:

Andam sempre preocupados.

E quanta gente vem e vai!

E tudo tem aquele caráter impressivo que 

                                                [faz meditar:

Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por 

                                   [um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, 

                                   [pela voz dos símbolos,

Que a vida passa! que a vida passa!

E que a mocidade vai acabar.

 

                                              Manuel Bandeira

                                  Petrópolis, 1921 (*)

 

 

Comentários

 

Aos 35 anos, Manuel Bandeira se encontra perdido na vida – “entre duas voltas do caminho” –, em plena estrada, em trânsito portanto. Ainda não encontrou seu lugar: na cidade, se dissolve na multidão, onde todas as pessoas são iguais; na roça, aí sim, pode preservar a própria identidade.

            Desconheço que algum dia Bandeira tenha morado na roça, de modo que a comparação que estabelece no poema entre pessoas da cidade e da roça deve ter outro significado: talvez, estando entre muita gente (na cidade), o poeta se sentisse excluído; ao sentir-se bem e só (na roça), podia ser quem realmente era. A doença de que foi portador, e que carregou por toda a vida, por si só, trazia a marca indelével da exclusão social.

            A diferença se estabelece também entre os cães, em imagem originalíssima: na roça, “andam sempre preocupados” como “homens de negócio”, cientes da própria responsabilidade canina perante a vida. Na roça tudo faz meditar, há solenidade em todas as coisas, seja em um “enterro a pé”, na singela “carrocinha de leite”, até nos cães. É possível que o poeta esteja falando das reminiscências da infância, vivida no Recife, onde nasceu e morou até os quatro anos de idade. 

            O leitor não se iluda, tudo são símbolos no poema, alerta Bandeira. A água do rio corre, corre. A vida passa, passa. A simples repetição de uma palavra imprime movimento de continuidade à frase no fluir do poema e da vida.

            O último verso revela a essência do poeta. Desde seu primeiro poema – Desencanto – escrito em Teresópolis (1912), ele “faz versos como quem morre”. O diagnóstico de tuberculose, ele o recebeu muito cedo como sentença definitiva de morte. Agora, com Estrada, aos 35 anos, ele permanece com a certeza de que a mocidade – ou a própria vida – vai terminar a qualquer momento.

            Ainda assim, o lirismo está mais presente do que nunca na poesia de Manuel Bandeira.

            (Bandeira faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, aos 82 anos.)

 

 

 (*) In: Manuel Bandeira – Poesia completa e prosa, Ed. Nova Aguilar, 1990.

4 comentários:

  1. Nossa André , conhecia esta poesia mas sua interpretação mudou completamente o modo de vê-la. Excelente.

    ResponderExcluir
  2. Esse poema é pura ciência da vida!!! Lindo demais!!!
    As colocações foram fantásticas.
    🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷🌷

    ResponderExcluir
  3. A semana começou muito bem. Se os cachorros de negócios parassem um pouco para ler esse blog ... melhor não.

    ResponderExcluir
  4. Muito bom! O "louco" nos ensina a ler, discriminar, vislumbrar as entrelinhas e alusõs. Um ótimo exercício.

    ResponderExcluir