Esta estrada onde moro, entre duas voltas
[do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda
[a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a
[sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homem
[de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que
[faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por
[um bodezinho manhoso.
Nem falta o murmúrio da água, para sugerir,
[pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! que a vida passa!
E que a mocidade vai acabar.
Manuel Bandeira
Petrópolis, 1921 (*)
Comentários
Aos 35 anos, Manuel Bandeira se encontra perdido na vida – “entre duas voltas do caminho” –, em plena estrada, em trânsito portanto. Ainda não encontrou seu lugar: na cidade, se dissolve na multidão, onde todas as pessoas são iguais; na roça, aí sim, pode preservar a própria identidade.
Desconheço que algum dia Bandeira tenha morado na roça, de modo que a comparação que estabelece no poema entre pessoas da cidade e da roça deve ter outro significado: talvez, estando entre muita gente (na cidade), o poeta se sentisse excluído; ao sentir-se bem e só (na roça), podia ser quem realmente era. A doença de que foi portador, e que carregou por toda a vida, por si só, trazia a marca indelével da exclusão social.
A diferença se estabelece também entre os cães, em imagem originalíssima: na roça, “andam sempre preocupados” como “homens de negócio”, cientes da própria responsabilidade canina perante a vida. Na roça tudo faz meditar, há solenidade em todas as coisas, seja em um “enterro a pé”, na singela “carrocinha de leite”, até nos cães. É possível que o poeta esteja falando das reminiscências da infância, vivida no Recife, onde nasceu e morou até os quatro anos de idade.
O leitor não se iluda, tudo são símbolos no poema, alerta Bandeira. A água do rio corre, corre. A vida passa, passa. A simples repetição de uma palavra imprime movimento de continuidade à frase no fluir do poema e da vida.
O último verso revela a essência do poeta. Desde seu primeiro poema – Desencanto – escrito em Teresópolis (1912), ele “faz versos como quem morre”. O diagnóstico de tuberculose, ele o recebeu muito cedo como sentença definitiva de morte. Agora, com Estrada, aos 35 anos, ele permanece com a certeza de que a mocidade – ou a própria vida – vai terminar a qualquer momento.
Ainda assim, o lirismo está mais presente do que nunca na poesia de Manuel Bandeira.
(Bandeira faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, aos 82 anos.)
Nossa André , conhecia esta poesia mas sua interpretação mudou completamente o modo de vê-la. Excelente.
ResponderExcluirEsse poema é pura ciência da vida!!! Lindo demais!!!
ResponderExcluirAs colocações foram fantásticas.
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A semana começou muito bem. Se os cachorros de negócios parassem um pouco para ler esse blog ... melhor não.
ResponderExcluirMuito bom! O "louco" nos ensina a ler, discriminar, vislumbrar as entrelinhas e alusõs. Um ótimo exercício.
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