Estátua de Borba Gato em chamas.
Foto: Thais Haliski
Com o título Borba Gato incendiado, postei ontem nesse blog minha opinião contrária à destruição de estátuas e monumentos, amparado por argumentos de Hélio Schwartsman, articulista da Folha de S. Paulo, a quem muito admiro. http://loucoporcachorros.blogspot.com/2021/07/borba-gato-incendiado.html
Também ontem, El País publicou texto de Vladimir Safatle, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo: Do direito inalienável de derrubar estátuas.
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-07-26/do-direito-inalienavel-de-derrubar-estatuas.html
(Peço ao meu eventual leitor o obséquio de ler o texto de Safatle antes de prosseguir no meu arrazoado. Ou não.)
Logo abaixo da manchete do jornal, Safatle escreve: “Um bandeirante é, acima de tudo, um predador.” O verbo está no presente do indicativo – um bandeirante é. Parece que, para o autor, Borba Gato vive, e por isso deve ser punido. Mas o professor não é ingênuo; ele justifica: “Quem controla o passado, controla o futuro”. E informa que a frase está em 1984, de George Orwell, e “é uma das mais importantes lições a respeito do que é efetivamente uma ação política. Toda ação política real conhece a importância de compreender o passado como um campo de batalhas. Ela compreende que o passado é algo que nunca passa por completo.”
O passado pode até não passar completamente, mas pode ser ressignificado; podemos dar outro sentido ao passado, especialmente quando há aspectos negativos envolvidos. O passado não precisa repetir-se indefinidamente, tanto nos campos social e político quanto na esfera pessoal.
Safatle prossegue: “O “agora” é apenas uma forma, politicamente interessada, de bloqueio do presente. Pois quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.”
“Liberação do passado” é uma boa expressão! Parece claro que ela não representa a destruição do passado. Liberação ou libertação são palavras que exemplificam bem o processo de ressignificação.
Prossegue Safatle: “Os apóstolos do esquecimento deveriam lembrar que foi assim que criamos o país da compulsão contínua de repetição. País que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964, no qual uma política catastrófica de anistia permitiu que as Forças Armadas preservassem seus responsáveis por crimes contra a humanidade até que eles voltassem a ameaçar a sociedade. O esquecimento é uma forma de governo.”
Surge aqui um paradoxo! Safatle é contrário ao esquecimento, porém propõe a destruição de estátuas que lembram um passado ruim. Penso que, através da educação, mãe de todas as coisas, todos ficarão sabendo que Borba Gato existiu e que não foi flor que se cheire! Basta ler Escravidão, de Laurentino Gomes (Globo Livros). Esquecê-lo, jamais!
O professor é ainda mais enfático: “Pois uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: “assim foi e assim deveria ter sido”.
O argumento é fraco: nem sempre o que foi, deveria ter sido; o Holocausto é “celebrado” em todo o mundo com a edificação de museus, uma infinidade de livros e filmes, para que nunca seja esquecido e para que nunca mais se repita.
Continua Safatle em sua pregação: “Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia.”
De fato, Borba Gato exemplifica bem a violenta colonização sofrida pelo Brasil, e por isso sua memória deve ser preservada: em vez de enaltecê-lo, a História deve ser reescrita e apresentada às crianças logo no ensino fundamental. Falsos heróis merecem ser desmascarados para que nunca sirvam de exemplo.
Agora surge uma séria acusação por parte do professor Vladimir: “Quem faz o papel de carpideira de estátua acaba se tornando cúmplice dessa perpetuação. Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.”
Devo admitir que gostei do termo “carpideira de estátua”, mas trata-se de pura retórica. Ninguém mais chora o bandeirante, faz tempo que ele morreu. Em pleno século XXI, podemos olhá-lo com outros olhos, não há mais necessidade do ódio, da represália, da vingança. Repito, a Educação ressignifica!
Safatle conclui: “Por isso, quando as estátuas começarem a cair, é porque estamos no caminho certo.”
O Estado Islâmico estava absolutamente certo do caminho que havia tomado quando dinamitou os monumentos da cidade histórica de Palmira, na Síria. Eles jamais serão ser reconstruídos – irreparável perda para a humanidade. As certezas são mesmo perigosas, inclusive as minhas.
Concluo meu ponto de vista com a analogia da queima de livros promovida pela Inquisição e pelo regime nazista. Livros, monumentos, estátuas, representam ideias. Podemos ser contrários a elas, apagá-las nunca. Melhor pensá-las, discuti-las e guardá-las na memória da humanidade.
Também não acho adequado queimar monumentos, como se isso, simplesmente, corrigisse erros. Até porque teremos que queimar muitas memórias. Vamos apagar Tiradentes, que tinha escravos? Vamos execrar José de Alencar, que era contra a abolição? Vamos queimar os sermões do Pe. Vieira, que convencia os negros a se sujeitar à escravidão, para ganhar o Céu? E tem mais. Se não fosse a ação selvagem e violenta dos bandeirantes, o Brasil seria um país muito diferente do que se tornou, talvez dividido em muitos. É fato histórico. Vamos apagá-lo?
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