Há médicos e médicos, porque antes de tudo vem a pessoa.
Mineiro, natural de Uberaba, Clóvis era um desses seres especiais, que escolheu a Medicina por pura vocação. Pessoa simples, pouco afeito às artes em geral e em particular às sutilezas da literatura, fez questão de preservar suas origens no trato com as pessoas e no modo de falar.
Eu, que o conheci bem – trabalhamos juntos –, guardo dele bela lembrança: nunca conheci profissional que conseguisse estabelecer melhor relação médico-paciente. A comprovação desse fato está na extraordinária história que passo a contar.
Outro dia atendi em meu consultório a senhora H., acompanhada do marido; ela, perto dos 50 anos, nervosíssima, agitada, assustadiça, qualquer movimento meu era visto como uma ameaça à sua integridade física, queixava-se de surdez na orelha esquerda; o marido, paciente, calmo, sorridente, por certo acostumado com o desempenho teatral da esposa.
Depois de examiná-la, indiquei uma simples lavagem de ouvido, para remoção de cerume. A mulher foi às nuvens; chorou desbragadamente, gritou, esperneou, imprecou aos céus que se me abatesse uma desgraça qualquer, e por fim, sobrou para o marido, Eu não disse que não queria vir nesse médico?
– Não permito de maneira nenhuma, assim ela encerrou o assunto.
– Já teve filhos, senhora H.? perguntei calmamente.
– Tive dois, um casal.
– E como foi isso? Parto normal?
– Sim, partos normais.
– A senhora, como se comportou?
– Doutor, sou uma predestinada porque tive a fortuna de ser atendida pelo Dr. Clóvis, mineiro de Uberaba, o senhor por acaso ouviu falar?
– Sim, ouvi falar. Bom médico?
– Aquilo é que era médico, o resto é conversa. Desculpe doutor, sem desfazer do senhor. Vou lhe contar uma história que é a prova de que estou falando a verdade.
E a senhora H. iniciou longo relato sobre o primeiro parto, o segundo parto, as inúmeras vezes em que foi socorrida pela incomparável competência do Dr. Clóvis, e como era a última consulta da tarde, ouvi com paciência e interesse o caso do meu falecido amigo, de saudosa memória.
– O que eu mais apreciava no Dr. Clóvis era o carinho com que me tratava! Um belo dia, chamei ele em casa por causa de forte gripe. Ele chegou logo depois da hora do almoço, ouviu minhas queixas, me examinou com o cuidado de sempre, mediu pressão, tomou pulso, escutou coração, pulmões, palpou a barriga (ai que vergonha!), meticuloso, calmo, seguro de si. Passou a receita, me tranquilizou, nada de grave; prescreveu repouso.
A consulta estava por terminar quando resolvi lhe oferecer delicioso licor de jabuticaba que tenho guardado com carinho, a especialidade da casa. Dr. Clóvis aceitou de pronto! E tomou o primeiro cálice, pediu mais, o segundo, o terceiro... Conversa vai conversa vem, bebeu toda a garrafa do meu precioso licor, o senhor acredita?
Estávamos em meu quaro, onde me examinou e onde tenho confortável sofá. Pois não é que Dr. Clóvis pediu licença para repousar um pouco, deitou-se, e quando acordou já era noite fechada. Assim era o meu médico, gente como a gente. Que Deus o tenha, Louvado Senhor Jesus Cristo. Nunca vi outro igual, sem desfazer do senhor, é claro.
Já mais calma, consegui fazer a lavagem da orelha da senhora H., sem maiores percalços. Fui bastante delicado nas manobras, mas nada que se comparasse ao meu falecido amigo Clóvis. Aquele sim, era um bom médico!
Delicioso conto!
ResponderExcluirTextos depois de publicados andam com suas próprias pernas. Essa é uma das magias da arte. Fiquei com uma certa desconfiança dessa relação medico-paciente.
ResponderExcluirJá não sou dono do meu conto. Aliás, nunca fui.
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