terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Água funda 2

 


 

            “– Que é que você tem, Joca?

            – Nada.

Vicente Rosa olhou com atenção o rosto sério do amigo.

            – O que é?

            – Nada. Não é nada. Não tenho nada. Não me atormente.

            – Nem pra mim, que sou seu amigo? Com efeito! 

Então Joca se abriu:

– Não é nada do que você pensa. O mal que eu sinto está aqui. Aqui e aqui – bateu no peito e na cabeça. E no corpo inteiro, misturado com o sangue. O mal é um desapego. Não posso mais sentir nem pensar. Tudo se desmancha dentro de mim, e eu não sinto; feito mardelazento, que perde os dedos, e está apodrecendo em vida e não sente nada. Aqui dentro, está vendo? Aqui entro. Eu quero sentir tudo o que sentia: raiva, ciúme, desespero, ter vontade de brigar, como antigamente, e não tenho nada. Curiango [apelido da esposa] vai e vem e não me importo. Só às vezes, sou um pouco do que era. Quando estou falando, meu sentido foge. Ela está me chamando, e qualquer dia, vou atrás dela por aí.

– De quem?

– Da Mãe de Ouro.”

 

O trecho acima é pequena amostra de Água funda, de Ruth Guimarães (Editora 34, 2018), livro lançado em 1946. Era o primeiro livro da autora, então com 26 anos, e fez sucesso, ainda mais com crítica favorável de Antonio Candido, que escreveu no Diário de S. Paulo em 14/11/1946: “Quem começa desta maneira irá, certamente, muito alto na carreira de escritor.” E ela foi mesmo!

            Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba, em 1920. Iniciou seus estudos em Cachoeira, prosseguiu em Lorena, Guaratinguetá, São Paulo, onde conheceu e manteve contato com Mario de Andrade, e se formou pela Escola Normal de Guaratinguetá, no Instituto de Educação Conselheiro Rodrigues Alves (onde estudaram meus pais, eu e meu irmão).

            Mulher, negra, meio caipira – do que ela se orgulhava –, Ruth escreveu dezenas de livros; escreveu poesia, crônicas, contos, artigos, reportagens, crítica literária, romances. Em 1961 graduou-se em Dramaturgia e Crítica, pela Escola de Arte Dramática, de Alfredo Mesquita.

            Morreu em Cachoeira Paulista e, 2014, aos 93 anos de idade.

 

            E Joca acabou indo mesmo atrás da Mãe de Ouro. A descrição do que parece ser um surto psicótico não poderia ser mais precisa. Água funda traz fortes marcas do regionalismo caipira do Vale do Paraíba e sul de Minas Gerais, região onde a letra erre é falada com típico sotaque (póóórrrta, por exemplo), e a letra ele é pronunciada como erre. Maldito fala-se mardito. 

            Daí ter aparecido no texto acima a palavra “mardelazento”, cujo original é maldelazento (aquele que possui o mal de Lázaro, leproso). Mas não vá meu leitor supor que se trata desses livros regionalistas desagradáveis, de escrita pobre, as palavras todas malescritas, não, Ruth escreve com finesse, caipira erudito por assim dizer. E quem o confirma é Antonio Candido, em prefácio desta nova edição.

            Vale a pena ler Água funda! Vale a pena conhecer obra e vida de Ruth Guimarães.

 

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