Trancoso era um homem chucro. Chucro é pouco, era rude bruto burro bravo agreste arisco arrua feroz indócil indomável labrusco montês proceloso sáfaro selvagem beócio besta boçal bronco desalumiado estúpido néscio nulo toupeira e tudo o que de pior haja. Mas tinha um bom coração.
Criança pequena, o pai dele já se admirava, Trancoso pode estar com gripe, tosse, catarrento, febre alta, mas a fome ele não perde, alardeava o pai. Doentinho, mesmo assim batia o pratão que a mãe lhe preparava, sem se importar com o de comer: gostava de um tudo. E muita vez, repetia. Sarava logo, pudera.
Cresceu bruto e se casou com a melhor cozinheira da cidade. Dorinha era boa moça, educada, com algum estudo, arranhava o inglês, e se encantou com a ingenuidade de Trancoso, bondade escondida num vão da alma, que só ela viu, a despeito da rudeza, da brutalidade, da selvageria, e pensou – como pensam muitas mulheres –, que poderia domá-lo.
E domou.
Dorinha domou Trancoso com a ajuda de Veludo, lindo pastor alemão, cachorro inteligente, afetuoso, valente, que se tornou verdadeiro filho para Trancoso. O homem se desmanchava diante do cão, sempre limpo, de banho tomado toda semana, pelo escovado brilhante, às custas da melhor ração para a raça, o peso bem controlado.
Viviam felizes, os três. Trancoso ganhou reputação como mestre de obras, disputadíssimo na região; Dorinha, professora do fundamental em escola particular, respeitada pelos colegas e querida pelos alunos; Veludo, zeloso, tomava conta da casa.
Dorinha pôde observar com o passar dos anos aquilo que o sogro havia profetizado: o marido não perdia a fome por nada desse mundo. Não raro surgia problema com uma obra, ora reclamação do arquiteto ora do proprietário ora do fiscal da Prefeitura, tudo caía nas costas do mestre de obras, que a corda arrebenta sempre... Trancoso embrabecia, rugia por dentro, descontava nos serventes, que a corda... Ao final do dia entrava em casa besta-fera bruto cuspindo fogo, logo apagado por Dorinha, mulher inteligente, sabedora dos humanos sentimentos. Como ela conseguia, um mistério. Na hora do jantar, a comida cheirosa, bonita, gostosa como só Dorinha sabia fazer. Por nada desse mundo, Trancoso nunca perdeu o apetite!
Ele era muito apegado ao pai, que morreu aos 73 anos; Trancoso inconsolável chorava dia e noite, só parava na hora das refeições, e raspava o prato antes de voltar a chorar. Dois anos depois perdeu a mãe e foi a mesma coisa, um chororô sem fim, com intervalos para as refeições. Dorinha intrigada, sem explicação, permanecia em silêncio. Era o jeito dele.
Até que Veludo morreu. Morreu de velho. Aí Trancoso desabou, chorou mesmo de verdade, desesperado de dor funda, dor na alma, insuportável, rasgando tudo, tanto amor que ele tinha pelo animal. Perdera um amigo.
Chegada a hora do almoço, Dorinha botou a comida na mesa, ressabiada fez o prato do marido, arroz, feijão-temperado-com-orelha-de-porco, bife-acebolado, ovo-frito, farofa-de-cebola-queimada, tomate-picado, três-gotas-de-malagueta. Trancoso sentou-se à mesa, bateu o pratão.
A comida de Dorinha havia perdido o gosto.
A morte dos nossos animais é realmente desafio muito doloroso. Tira o colorido da vida! Compreendo o ocorrido com Dorinha.
ResponderExcluirDesculpem, tive um lapso de analfabetismo funcional.....
ExcluirCompreendo a perda do prazer pela comida vivenciada por Trancoso!
Aprendi muitos adjetivos ao ler esse conto.
ResponderExcluirUm verdadeiro THESAURUS!!!
Obrigado, Ciça, pela releitura.
ResponderExcluirAté Trancoso tem coração!
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