Desde a estreia de Leandro Karnal
como cronista de domingo no Estadão, acompanho os textos dele com interesse e
senso crítico agudo, daí a conclusão de que ele fala melhor do que escreve. Trata-se
de um professor, não há dúvida, mas quando exagera nas citações em suas crônicas,
fica chato.
Até que chego à crônica de hoje, As surpresas da prisioneira 29700 (28
Jan 2018).
Karnal inicia o texto com uma
frase simples: “Sou amigo de Thereza e Gustavo Halbreich há anos.” E começa a
descrever dona Eugênia, mãe do Gustavo, nascida em Cracóvia em 1919. Em 1941
foi para a Rússia, fugindo do nazismo, para em seguida retornar a Polônia, para
amparar a família.
Ela e alguns parentes foram
removidos para Auschwitz e Dona Eugênia recebeu no braço o número 29700. Informa
Karnal: “Os pais dela foram executados: ele com uma injeção de benzina e a avó
de Gustavo na câmara de gás. Os irmãos tiveram destinos variados, dois foram
enforcados por terem participado da resistência antinazista e outra parte da
família partiu para construir Israel.”
Sobrevieram dona Eugênia e o
marido Jakub Halbreich. Fugiram para a Suécia e depois para o Brasil.
Nesse ponto da crônica, Karnal passa
a relatar o que aprendeu com dona Eugênia, ou seja, sem citações extraordinárias,
passa a nos contar sobre a História viva, pulsante, verdadeira porque sem
intermediários ou interpretações.
Afirma Karnal: “Ela havia passado
por tudo e continuava leve, otimista, feliz e cheia de bondade no olhar. Não
fora contaminada pelo horror que tinha presenciado. Ter sobrevivido em meio a
tanta violência reforçara nela o amor à vida e a crença na humanidade. Foi uma
experiência linda ouvi-la sobre como as coisas eram boas no novo mundo e como
ela amou a terra brasileira. O coração de dona Eugênia não foi tomado pelo
justo rancor de quem desceu ao mais terrível que a humanidade foi capaz.”
E o cronista prossegue: “Uma
noite comentei que existia um grupo que negava a existência do Holocausto. Mostrei
indignação viva, todavia supus que ela já soubesse. Ela não apenas desconhecia
como não entendeu minha fala. Repeti, achando que era a língua original dela
que a traía na compreensão. Dei nomes e livros e falei como nós, historiadores
profissionais, combatemos esse gigantesco esforço antissemita e de ataque à
memória real e documentada do Holocausto. Ela continuou fazendo cara de quem
não estava acompanhando meu raciocínio. Só então veio a luz ao meu
entendimento: uma mulher que esteve lá, no olho do furacão do genocídio, não
entenderia que alguém pudesse dizer que aquilo não existiu.”
E Karnal conclui seu relato de
modo emocionante: “Estive um pouco afastado dos amigos queridos [Thereza e
Gustavo Halbreich] e, um dia, estava com um grupo no Museu do Holocausto em
Israel. Não era a primeira vez e eu já estava preparado para o impacto daquela
memória do Yad Vashem. Passei pelas salas e tive a mesma experiência impactante
da visão final ao sair do museu: as colinas de Israel, a sobrevivência dos
nomes que o nacional-socialismo tinha tentado obliterar. Andando pelo caminho,
topo com uma pedra escrita em hebraico e línguas ocidentais com o nome de dona
Eugênia. Era uma estela votiva pela memória dela, colocada pelo Gustavo. Eu não
sabia que ela havia falecido e chorei ali, naquele jardim.”
Confesso que fui às lágrimas com
a magnífica aula de História de Leandro Karnal.
Ele lembra que 27 de janeiro (ontem)
é o dia da memória do Holocausto, data da libertação de Auschwitz-Birkenau, há
73 anos. E alerta: “Que nunca esqueçamos, que nunca se repita, que dona Eugênia
viva para sempre. A soma do número de prisioneira 29700 dá 18, na tradição
hebraica, a vida (chai). Viva a vida!”
Aproveito a crônica do Professor
para prestar minha homenagem aos que padeceram sob o jugo do Terceiro Reich.
Nega-se portanto o Holocausto por duas razões opostas: por ter vivido nele ou por querer ocultá-lo, em defesa do que havia por trás dele. Mas é em vão. Ele é inegável, em sua monstruosidade.
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