segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Suzete apaixonada

Querido André,

nossa correspondência anda rareando, não por falta de carinho, que sobra o carinho que sinto por você, mas é essa correria boba de todo dia que me ocupa com inutilidades e grosserias que não levam a lugar algum, apenas tiram o sossego da gente, sossego que preciso para sentar, tomar da caneta, ajeitar o bloco de papel de cartas, limpar a cabeça, e começar a escrever a você.
            Pronto, comecei!
            E começo por assunto de sua preferência, a Literatura. (Apendi com você a escrever Literatura, Educação, Evolução das Espécies etc, sempre com maiúsculas: sinal de respeito!) Estou lendo romance do Amós Oz que tem o título mais bonito do mundo: Rimas da vida e da morte. Quando vi o livro na prateleira pensei que tratava de poesia, mas é prosa, e da boa. Já faço parte do fã clube do Oz, torcendo para que ele ganhe o Nobel, em vez de algum tocador de viola besta por aí.
            Mas o que eu queria comentar, cá entre nós, é que você publicou um microconto no Louco por cachorros falando da bunda de uma garçonete. Será que você também está lendo as Rimas? Enquanto aguarda a hora da conferência, o escritor entra num botequim, pede um café e repara na bunda da garçonete. Coincidência? Pode ser...
            Mas é assim mesmo, tudo que a gente lê fica girando na cabeça da gente, e sai de diversas formas, até na forma de um ótimo microconto.
            Pena que eu não tenho com quem conversar sobre essas coisas, André. No salão onde trabalho ninguém lê nada, nunca ouviram falar de Amós Oz. Gostam mesmo é de Caras e fofocas. 
            Pois fiquei conhecendo um médico daqui da cidade – depois conto como isso aconteceu – que diz que no meio onde vive é a mesma coisa, ninguém lê nadinha de nada. Será verdade, André? Doutores! Se uma pobre cabeleireira como eu adora ler, por que gente educada como os médicos não lê? (Estou concordando o verbo ler com gente educada; está certo isso?) Sempre foi assim?
             Ou a coisa está piorando? Ontem, no jornal, li a crônica de um colunista famoso, que às tantas diz que o Saramago é "muito chato". Pode isso? Opinião dele, claro que pode, mas fico pensando se ele é que não conseguiu penetrar na arte do português. Então não precisava confessar.
            Vamos ao que interessa. Doutor T. apareceu no salão para cortar cabelo e outra não poderia atendê-lo senão eu, a única que corta cabelo de homem – e gosta! Ainda antes de se sentar, ele bateu o olho no livro do Oz sobre o balcão e, surpreso, perguntou se eu gostava de ler. Pronto: a conversa enveredou, porque ele adora ler e escrever, até já publicou um livro de contos, e quando soube que eu também escrevo, T. enlouqueceu!
(Por falar em contos, estou escrevendo um conto que espero seja publicado no Louco, se você aprovar, feitas todas as correções que você achar necessárias. Combinado? Ainda estou procurando um pseudônimo par assinar o texto. Pena que o Nelson já tenha se utilizado de Suzana Flag...)
           Desquitado, educado, com uma cabeleira de fazer inveja ao Javier Bardem (que eu amo de paixão!), nos seus saudáveis 50 anos, leitor e escritor, T. balançou a Suzete, você acredita, André? Mas estou para descobrir se ele é mais um desses mulherengos filhos da puta que comem e largam. Isso dá medo numa mulher, sabe. Muito medo. Ninguém conhece ninguém, mesmo depois de longa convivência. Imagine então de supetão, você corta o cabelo do cara, ele te dá uma cantada em alto estilo – a Literatura como isca – você fica sem-pai-nem-mãe, divagando, as pernas bambas, viajando, a cabeça a rodar, delirando, meu deus!, alucinando, e aí... se fode.
            Por que não nasci homem?
            Querido André, tenha paciência comigo. Desculpe o desabafo. Carta serve também para desabafar, não é mesmo? É a tal escrita terapêutica de que você tanto fala! Mas eu precisava falar sobre T., ou poderia parecer uma traição a você, meu amigo. Vamos ver no que vai dar, se é que vai dar...
            E ainda nem perguntei por você! Recuperando-se do atropelamento? Espero que sim. Responda logo, com notícias sobre você.
            Da sempre sua,

                                                            Suzete.


P.S.: adoro isso de p.s. numa cartinha. Fica tipo chique. Para falar de bobagem: encontrei um livro de conteúdo duvidoso, mas lindo, caríssimo, O Livro dos Símbolos – Reflexões sobre imagens arquetípicas, da editora Taschen. São vários os autores. Comprei. Coisa de cabeleireira. Depois escrevo mais sobre o livro.

P.S 2: assim é demais, é vontade de continuar conversando com você. Escrever carta para mim é isso, uma conversa, você ao meu lado, ouvindo, falando... Mas queria perguntar se você acha que estou escrevendo um pouco melhor. Responda sinceramente, please.


P.S.3: puta que pariu, nunca vi carta com 3 P.S.s.

3 comentários:

  1. Que delícia de leitura! Obrigado Tio André por nos presentear com suas primazias.

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  2. Suzete em alto estilo. Pode dizer a ela que está muito bem de estilo, sim senhor. Esperamos a ver no que dá o caso com o Dr. T. Regra geral, médico não é flor que se cheire: tem cheiro de éter, água oxigenada, fisohex...

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  3. Cartas cada vez melhores, muito gostosas de se ler e que em sua simplicidade trazem tantas coisas a se pensar.

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