sábado, 24 de junho de 2017

Suzete visita Capelinha do Chumbo

Meu querido André,


faz tempo que não lhe escrevo e sinto falta disso. Também pudera, com essa vidinha besta que tenho levado – só cortar cabelo de homem, que aliás eu gosto –, as novidades rareiam. Mas no último fim de semana surgiu algo de novo, para quebrar a tal rotina besta. Então, veio o desejo de lhe contar o sucedido.
            Rosa, amiga recente mas desde já ganhando ares de intimidade, moça boa, me parece, educada, que também gosta de ler mas não escreve uma linha, diferente de mim nesse ponto, o que não faz diferença para a nossa amizade, apois,  Rosa me convidou para passar o fim de semana na cidade dela, interior de Minas (desculpe o pleonasmo, Minas só tem interior...), cidadezinha de nome estranho, embora bastante sonoro: Capelinha do Chumbo.
            Gostei do lugar, muita ladeira, um vento seco, tudo muito simples e pobrinho, e sábado pela manhã que fomos a um buteco, assim mesmo como u,  comer lambari frito e queijo com cerveja e uma pinga para rebater o frio, as pessoas todas gentis, uma cachorrada incrível vagando pelas ruas, todos bem alimentados, cachorros de todos os tamanhos e de uma única raça – vira-latas todos, cada um com sua própria mestiçagem –, mas o melhor de tudo foi a conversinha boa, maneira, fiada, quer dizer sem compromisso, o dono do bar sentou-se em nossa mesa e animou com a piada do bêbado que ao voltar para casa, carregando um litro de cachaça junto ao peito, à noite, na escuridão do breu, ao atravessar um corguinho (é assim que falam por aqui) escorregou, caiu, sentiu a camisa molhada, e exclamou: Deus queira que seja sangue!
            Rosa querendo agradar, eu recebendo as gentilezas. À noite, ela me convidou para uma churrascaria, haveria um show de música sertaneja, ela levaria o irmão, morador da cidade, motorista de caminhão, interessado na minha pessoa, insinuou Rosa. Fazer o quê?
            André, tenho ódio de churrascaria. E mais, tenho ódio de música sertaneja. Se Rosa queria agradar, eu só poderia aceitar as gentilezas, não é mesmo? Dizia a minha mãe (você ficou sabendo que ela faleceu?): pelo santo se beija o altar. Lindo provérbio, eu acho, apropriado para casais em que um deles não tolera a sogra, mas vai levando o casamento em banho-maria. Apois, fomos à churrascaria.
            Salão enorme, os homens com chapéu de vaqueiro, camisa xadrez verde ou azul, calça jeans, as mulheres (bonitas!) mostrando o que tinham de melhor em seus guarda-roupas, garçons solícitos, Rosa era amiga do dono, ele veio até nossa mesa, fomos apresentados, rapaz bem apessoado, para usar uma expressão machadiana (que pretensão a minha...), Társio, o irmão da Rosa desmanchando-se em mesuras e rapapés (Machado teima em se intrometer), todo mundo falando alto, muita aguardente, muita cerveja, muita alegria. Eu, preocupada.
            Até que o show começou! A cantora, ainda moça, esgoelou por hora e meia sem intervalo, sem uma única pausa, uma música emendada na outra, nem tempo havia para os aplausos, o violão de acompanhamento precário, traaammm-traaammm-traaammm, entende como é?, o instrumento maltratado, pobre violão.
Na mesa ao lado, três moças e três rapazes; as moças conversavam com as moças e os rapazes com os rapazes; uma delas cantarolava todas as músicas, sabia todas as letras, poderia substituir a cantora principal em caso de urgência, e você bem sabe, André, aprendi com você que na vida só há uma urgência: caganeira (nada machadiano, isso).
Mas não houve necessidade de substituição, e a moça gritou até não poder mais. Às tantas, Társio pediu uma garrafa de vinho, Concha Y Toro naturalmente, isso depois de um gole de 51. Definitivamente ele queria me impressionar. Ah! os homens, tão previsíveis! Ele queria apenas me comer.
Em poucos minutos Társio ingeriu a primeira garrafa de vinho e pediu a segunda. Minha preocupação aumentou. Chegou a carne: queimada! Meu deus, será que a noite vai ter fim ou vou permanecer nesse martírio madrugadadentro? Engraçado, André, a gente experimentar o sentimento de extrema solidão, mesmo imersa numa multidão.
Me contive, quase não bebi, nada comi, permaneci alerta. Depois da segunda garrafa de vinho Társio tornou-se inconveniente agressivo invasivo (também aprendi com você isso de enfileirar adjetivos sem vírgula, que é para o leitor nãofazerpausas), eu atordoada com o sertanejo gritado da moça, Rosa visivelmente interessada no dono da churrascaria, Társio pegando no meu braço com insuportável bafo de pinga, e a pergunta O que estou fazendo aqui?, e a resposta que não vinha.
(Com frequência nos expomos a situações como esta, extremamente desconfortáveis, uma violência contra nós mesmos, quando então surge esta pergunta O que estou fazendo aqui?, e os episódios se repetem ao longo de nossa vida, não aprendemos nada com as sucessivas experiências, o que é isso, André? Pode me explicar? Tentativas de auto-extermínio? Falta de auto-respeito?)
Às tantas me levantei, determinada, puta da vida, Vamos embora, falei sem chance de réplica, me olharam com espanto, Será que ela surtou?, Vamos embora, estou cansada, o dono da churrascaria Mas vocês não vão esperar pelo fim do show?, Não, não vamos, vamos embora, respondi brusca deseducada agressiva, Társio com cara de cachorro que caiu da carroça de mudança, e fomos. Tenho ódio de churrascaria, música sertaneja e garanhão bêbado. Nem sempre se pode beijar o altar.
André, desejo apenas repartir com você as peripécias de uma noite mineira, uma tentativa vã de sair desta vida besta. Há mesmo solução para esta vida besta? Me diga?
Da sempre sua,


                                                                        Suzete.

5 comentários:

  1. Que delícia de conto, André!
    Aqui do interior das Minas Gerais, numa friagem de só, envio-lhe um caloroso abraço!

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  2. Exigente,observadora,adorável Suzete.

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  3. Só emendando outro anexim para a pobre Suzete: "Foi buscar lã, saiu tosquiada..." O louco, matreiro velho de guerra, jamais entraria numa fria dessas...

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