segunda-feira, 29 de junho de 2015

O roubo do orelhão

A pequena cidade do interior orgulhava-se de seu benfeitor. Era ele que, com mão de ferro, mantinha a ordem, o respeito aos valores morais da sociedade, o recato dos mais jovens, a garantia da segurança da população. Não exercia qualquer cargo oficial, e portanto não era remunerado por seu trabalho, o que lhe emprestava ares de santidade, de missionário, e por isso mesmo idolatrado. Vivia da aposentadoria de oficial reformado das Forças Armadas. Poucos, muito poucos conheciam seu nome de batismo; chamavam-no simplesmente Coronel.
Coronel seguia a cartilha do Exército, aprimorada por ele, na qual a lei continha apenas dois parágrafos, o Certo e o Errado. Nada de adendos ou incisos, que a interpretação ficava por conta dele mesmo. Bem verdade que para Coronel havia a lei de Deus acima da lei dos homens, mas isso ele deixava para o Padre – assim o presbítero era conhecido na cidade – responsável pela paróquia, porém submisso às ordens do Coronel.
Em dias de sol ou de chuva, Coronel nunca dispensava o sobretudo preto que lhe chegava aos joelhos, a esconder a pistola automática 9 mm que trazia à cintura. Homem moderno, em dia com o mundo digital, Coronel utilizava com desenvoltura os mais sofisticados programas de segurança pública e privada, armas imprescindíveis para a manutenção da segurança da comunidade, alardeava ele.
Pois foi exatamente através de seu potente computador que recebeu a fatídica denúncia, e em anexo a fotografia que não deixava dúvida sobre o crime:



Carroceiro roubou nosso orelhão!


            Havia um único orelhão em Paraíso do Leste, e era considerado pela população patrimônio inalienável (seja lá o que signifique tal vocábulo). A prefeitura mantinha o aparelho em perfeito funcionamento, embora fosse pouco utilizado nessa era de celulares, o que de modo algum seria considerado uma atenuante para o pérfido larápio.
            Coronel, ao receber a mensagem e ver a fotografia espumou de ódio. Há anos não havia um único caso de roubo em Paraíso do Leste, do que ele muito se orgulhava, e agora o roubo do orelhão, logo do orelhão, aquele patrimônio da cidade. Coronel sentia-se desonrado, sua autoridade desafiada, sua macheza posta à prova. Desligou o computador, colocou o cinturão com a 9 mm, vestiu o sobretudo preto, saiu feito louco atrás de Carroceiro.
            Todos na cidade conheciam Carroceiro, homem pacato nos seus 50 anos, meio bobo, pobre de espírito, sujo, catador de papel, garrafas vazias, latinhas de alumínio, qualquer ferro velho; tudo que fosse enjeitado pelo povo de Paraíso do Leste – ele mesmo um enjeitado –, servia para Carroceiro. Perambulava incansavelmente pela cidade, dormia debaixo de qualquer marquise ou árvore, revirava lixo atrás de restos de comida, sempre seguido por Diógenes, um vira-lata de cor indefinida, porte médio, cão esperto, fiel, amigo inseparável, que caminhava à sombra da carroça.
            Bastou que Coronel desse algumas voltas pela cidade em seu indefectível (seja lá o que esta palavra signifique) jipe 4x4 para que localizasse o meliante, tomando a fresca debaixo de uma mangueira.
            – Você está preso, seu safado.
            – Mas o que foi que eu fiz?
            – Não abre a boca ou lhe arrebento o resto de seus dentes. Vamos para a delegacia.
            Diante de Delegado – assim ele era conhecido na cidade –, outro subalterno de Coronel, começou a tortura.
            – Diga lá onde enfiou nosso orelhão!
            – Mas que orelhão?
            E tome safanão, coronhada, e quanto mais negava mais porrada, aí vieram os choques elétricos, especialidade de Coronel, artifício infalível, segundo ele, e Carroceiro negava, Que orelhão?, e era pau-de-arara, as unhas sendo arrancadas uma a uma, sessões de afogamento, sal grosso jogado nas feridas, É pra não infeccionar, debochava Coronel, Sei não Sei não Sei não, era só o que Carroceiro repetia, e quanto mais repetia mais apanhava, Delegado começava a fraquejar com pena do homem e tomava esporro de Coronel, Seja macho, Delegado, ou vamos ficar sem nosso orelhão, Sei não Sei não Sei não, sangue vertendo por tudo quanto era buraco na cara de Carroceiro, e quanto mais sangrava mais apanhava, Sei não Sei não Sei não, e quando Coronel mandou trazer o saco plástico foi que se ouviu pancadas na porta.
            – Que porra é essa? Eu não disse para não ser interrompido? – gritou Coronel.
            Mais batidas na porta, agora com insistência. Delegado resolveu abrir, era o Cabo – assim era conhecido em Paraíso do Leste.
            – Desembucha logo, caralho!
            – Coronel, o orelhão está lá...
    – Lá onde, seu veado?
            – Lá, onde sempre esteve...
           
            Nunca se soube quem fez a denúncia e enviou a fatídica fotografia a Coronel. Muito machucado, Carroceiro retornou à labuta diária, seguido por Diógenes, que permanecera à porta da delegacia até a soltura de seu amo. Quem cruzasse com Carroceiro pelas ruas de Paraíso, sempre de cabeça baixa, poderia ouvi-lo repetir o monótono murmúrio, Sei não Sei não Sei não...



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