quinta-feira, 25 de junho de 2015

A visita

Ao meu irmão Paulo.


O almoço de domingo, regado a caipirinha e cerveja, ainda não havia terminado quando Fagundes recebeu de sua mulher a terrível notícia:
            – O Ferreirinha virá visitá-lo hoje à tarde...
            – Que merda, Matilde! Esse chato do Ferreirinha então não sabe que hoje tem jogo do Corinthians? Só porque ele não gosta de futebol há de pensar que ninguém mais gosta? Um grandessíssimo filho da puta, isso sim! E você, o que disse, Matilde?
            – Nada, ora bolas! Dizer o quê? Para ele não vir?
            – Pois então, se vire, Matilde. Diga que estou com uma gripe fortíssima, diga que estou com caganeira, diga que estou com Ebola, diga o que você quiser, mas eu não sairei do quarto para fazer sala ao mala do Ferreirinha por nada desse mundo. E tenho dito.
            Assim terminaram o áspero diálogo e o almoço de domingo. Fagundes ainda pegou duas ou três latinhas de cerveja, trancou-se no quarto, ligou a tv no canal de esportes, tirou a camiseta e a bermuda, ficou apenas de cuecas, concentrou-se à espera do jogo.
            Matilde, mulher educada e sensível, não pôde conter algumas lágrimas:
            – Meu marido é um grosseirão, mas esse Ferreirinha é mesmo um chato... Precisava aparecer logo hoje, dia de decisão de campeonato?
            De qualquer maneira, Matilde preparou-se para receber o homem. Fez um bolo de chocolate do cacau colhido no próprio quintal, esquentou água para o café, deu uma varrida na sala, colocou a melhor louça na mesa de jantar. Às 4 da tarde em ponto – hora do início do jogo –, toca a campainha. Era o casal, Ferreirinha e senhora.
            – Vocês desculpem a ausência do Fagundes, ele pegou essa tal de chicungunha, virose gravíssima, que o deixou prostrado na cama com 41 graus de febre. Coitado, até falou no perigo em transmitir a doença ao casal amigo, e por isso não virá recebê-los.
            – Pobre amigo, murmurou Ferreirinha, visivelmente desapontado.
            O ruído da campainha fora abafado pelo foguetório à entrada do Corinthians em campo, de modo que Fagundes nada percebeu, os olhos pregados na tv, sofrendo como estão habituados a sofrer os corinthianos. O primeiro tempo terminou 0 a 0. Fagundes levantou-se apenas para esvaziar a bexiga e voltou para sua poltrona, esquecido do mundo, esquecido da vida. Só a vitória do seu time importava naquele momento, nada mais.
            Enquanto isso, na sala de jantar, Matilde fazia das tripas coração, tentando manter uma conversa civilizada com o chatíssimo casal. Lá pelas tantas, Ferreirinha iniciou feroz doutrinação religiosa, moralista ao extremo, esbravejando sobre como estavam corrompidos os costumes nos tempos atuais, vociferando contra os homossexuais, contra a maconha, contra as cenas de sexo nas novelas, até o Papa entrou na dança, acusado de permissivo e moderninho demais. A esposa, dona Efigênia, entretida com o delicioso bolo de chocolate do cacau colhido no próprio quintal, acompanhado do café preto coado na hora, apenas concordava com o marido, balançando a gorda cabeça enterrada no volumoso corpanzil. Matilde, embora educada e sensível, não gostava de sermão de qualquer natureza, e matutava consigo mesma: se Fagundes estivesse aqui, o Ferreirinha não estaria com essa conversinha besta; dava-lhe logo uns trancos...
            O jogo chegava ao fim, ainda no 0 a 0, para desespero de nosso torcedor. A cada perigo de gol, para um time ou outro, Fagundes revirava-se violentamente na poltrona, soltava urros destemperados, esmurrava a parede, num sofrimento atroz. Eis que, aos 47 minutos do segundo tempo, o Corinthians faz o gol da vitória!
            Fagundes salta da cadeira feito louco, aos berros de É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, abre a porta do quarto com estrondo, entra no corredor de braços erguidos, continua gritando até alcançar a sala de jantar, onde entra rebolando, numa felicidade esfuziante, quando se depara com as visitas, Matilde de olhos esbugalhados, muda de terror, apontando para o traje do marido, apenas uma florida cueca samba-canção. Ferreirinha, apoplético de indignação, só tem tempo de tapar com a mão espalmada os olhos de dona Efigênia, ainda de boca cheia.
            O casal levanta-se e sai sem se despedir. Passado o susto, Fagundes volta às comemorações: É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO, É CAMPEÃÃÃO... Matilde, depois de um copo dágua com açúcar, exclama:
            – Bem que dizia um grande amigo nosso, alto funcionário do Banco do Brasil: boa romaria faz, quem em sua casa fica em paz...

            

4 comentários:

  1. Hahahahahahahahahahahaha!!!!!!!..........😂😂😂😂😂😂😂

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  2. Tre bone. Final inusitado, como pedem os belos contos.

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  3. André perfeito este conto , cada um de nós conhece um Ferreirinha! Muito bem explorado o tema.

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