Alvarinho possuía muitas virtudes, exceto a
da humildade. Alguns amigos chegavam mesmo a acusá-lo de arrogante, penso que
injustamente. Ele não fazia por mal, era antes a manifestação de um espírito
exuberante, entusiasmado pela vida, quase um falastrão, do que genuína arrogância.
Além do que não se preocupava com o que pensassem ou dissessem a respeito de si
próprio, continuava contando suas lorotas com naturalidade e bonomia.
Pois
aconteceu que um mês antes de certa viagem de férias a Paris Alvarinho iniciou
as tais bravatas, Vou à exposição das obras de Gustave Klimt na Pinacothéque de Paris, Não posso perder
a retrospectiva de Pierre Bonnard no Musée
d’Orsay, A mostra sobre Velazquez no Grand
Palais será magnífica, No Petit
Palais ainda Les bas-fonds du
barroque, talvez o ponto mais alto da viagem! Ah!, e os concertos na Sala
da Radio France e na Filarmônica de
Paris!
Os amigos ouviam em
silêncio, pacientes, acostumados com aquele pedantismo congênito de Alvarinho.
Até que chegou o dia da partida e o alívio foi geral.
Que alívio que nada!
Choviam mensagens e fotografias de Paris, enviadas pelo WhatsApp, retratando as
belezas da cidade, os passeios pelo Sena, as visitas aos museus, os pratos mais
requintados da comida francesa.
Até que, pelo quinto dia
de viagem, nosso homem emudeceu. Assim de repente. Nem mais uma notícia sequer.
Os amigos começaram a se preocupar. O que teria havido com Alvarinho?
Passados
dez dias da partida, os amigos receberam extensa mensagem, explicando, com
detalhes, o acontecido. Reproduzo-a na íntegra, verdadeiro atestado de
sofrimento e humildade.
Caríssimos amigos,
antes de tudo, espero que
esta mensagem os encontre bem de saúde física e mental. Como puderam perceber
pelas mensagens anteriores, nossa viagem transcorria na santa paz de deus,
gozando que estávamos, eu e minha mulher, das delícias parisienses. Até que fui
acometido de grande infortúnio, que não posso deixar de compartilhar com vocês,
de quem espero compreensão, apoio, compaixão, e acima de tudo, discrição.
Em nossa quinta noite em
Paris, ao regressar de lauto jantar – escargots, ostras e confit de cannard –
já no quarto do hotel, fui tomado por excruciante dor no hálux direito, bem
junto à unha, dor esta que, além de intensíssima, tinha caráter latejante,
sugerindo-me que o dedo estava prestes a explodir.
Solicitei a prestimosa
ajuda de minha esposa, que se levantou, acendeu as luzes do aposento, e
examinou cuidadosamente o órgão doente. Seu diagnóstico foi instantâneo,
peremptório, inapelável, definitivo. E cruel:
– É bicho-de-pé!
– O quê?!!!
– Isso mesmo que você ouviu, Alvarinho. Bicho-de-pé, também
conhecido como batata baroa, bicho, bichô, bicho-de-cachorro, bicho-de-porco ou
bicho-do-porco, bicho-boco, bicho-do-pé, bitacaia, chique, chitacaia, dengoso,
espinho-de-bananeira, esporão, jatecuba, matacanha ou bitacaia, djigan,
moranga, nígua, olho-branco, olho-de-pinto, pique, piolho-de-faraó, pitxoca ou
pitxoka, pulga-da-areia, pulga-de-bicho, pulga-do-porco, pulga-penetrante, sico,
taçura, taçuru, tatarné, tuçuru, tunga, tunguaçu, vitacaia, xiquexique, xíquia,
zunga, zunge, zunja. Quer também o nome científico? Tunga penetrans.
Nem
perguntei como é que ela sabia aquilo tudo; mas sabia que ela foi criada na
roça, e que devia estar falando por experiência própria.
Sem qualquer
outro comentário, Efigênia, minha mulher, tomou de uma agulha de costura,
dessas fornecidas pelos hotéis para rasgões imprevistos e queda de botões, e
começou a escarafunchar meu dedo sem piedade.
– É preciso
tirar a batata.
– Batata?
Que batata?
Ela não se
deu ao trabalho de responder nem interrompeu a operação, continuou
escarafunchando – perdoem-me os amigos, mas não há termo melhor que possa
descrever aquela função – até que exclamou, após intermináveis minutos:
– Saiu! Veja
a batata!
Claro que eu
não quis nem olhar. Porém, o latejamento desapareceu como que por encanto,
restando-me no dedão uma enorme cratera!
– E onde foi que eu peguei
isso, Efigênia?
– Então não estivemos na
fazenda do meu avô dois dias antes de viajar, criatura?
É verdade, tínhamos estado
na roça. Mas o problema agora era o pavor de que meus amigos ficassem sabendo
deste infortúnio – melhor chamar logo, deste vexame.
Claro que ficariam
sabendo. Efigênia haveria de contar às amigas, e a notícia logo se espalharia
como rastilho de pólvora.
Então decidi contar eu
mesmo, implorando pela misericórdia de vocês, meus queridos amigos, para que
não espalhem a notícia: Alvarinho Foi A Paris E Precisou Ser Operado De Bicho-De-Pé!
Oh! miséria de vida.
Dois
meses após o sucedido, Alvarinho já havia perdido o verniz de humildade
adquirido com a traumática experiência, retomando a gabolice de sempre. Pau que
nasce torto...
Maravilha! Isso é que é uma historinha divertida e bem contada! Sorte que não deve ser verídica...
ResponderExcluirSerá?
ExcluirAlvarinho provavelmente não desfrutou da tão falada,cantada e decantada na roça coceira deliciosa proporcionada pela D. Tunga. Dizem que deitar na rede e coçar um dedão com bicho=do=pé é algo que todos deveriam passar por isto! Louco de volta , que prazer.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBicho de pé em Paris não é muito chic!!! Ninguém merece...
ResponderExcluirE se o bicho falar francês?
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