domingo, 24 de maio de 2015

Tunga penetrans


            Alvarinho possuía muitas virtudes, exceto a da humildade. Alguns amigos chegavam mesmo a acusá-lo de arrogante, penso que injustamente. Ele não fazia por mal, era antes a manifestação de um espírito exuberante, entusiasmado pela vida, quase um falastrão, do que genuína arrogância. Além do que não se preocupava com o que pensassem ou dissessem a respeito de si próprio, continuava contando suas lorotas com naturalidade e bonomia.
            Pois aconteceu que um mês antes de certa viagem de férias a Paris Alvarinho iniciou as tais bravatas, Vou à exposição das obras de Gustave Klimt na Pinacothéque de Paris, Não posso perder a retrospectiva de Pierre Bonnard no Musée d’Orsay, A mostra sobre Velazquez no Grand Palais será magnífica, No Petit Palais ainda Les bas-fonds du barroque, talvez o ponto mais alto da viagem! Ah!, e os concertos na Sala da Radio France e na Filarmônica de Paris!
Os amigos ouviam em silêncio, pacientes, acostumados com aquele pedantismo congênito de Alvarinho. Até que chegou o dia da partida e o alívio foi geral.
Que alívio que nada! Choviam mensagens e fotografias de Paris, enviadas pelo WhatsApp, retratando as belezas da cidade, os passeios pelo Sena, as visitas aos museus, os pratos mais requintados da comida francesa.  
Até que, pelo quinto dia de viagem, nosso homem emudeceu. Assim de repente. Nem mais uma notícia sequer. Os amigos começaram a se preocupar. O que teria havido com Alvarinho?
            Passados dez dias da partida, os amigos receberam extensa mensagem, explicando, com detalhes, o acontecido. Reproduzo-a na íntegra, verdadeiro atestado de sofrimento e humildade.

Caríssimos amigos,

antes de tudo, espero que esta mensagem os encontre bem de saúde física e mental. Como puderam perceber pelas mensagens anteriores, nossa viagem transcorria na santa paz de deus, gozando que estávamos, eu e minha mulher, das delícias parisienses. Até que fui acometido de grande infortúnio, que não posso deixar de compartilhar com vocês, de quem espero compreensão, apoio, compaixão, e acima de tudo, discrição.
Em nossa quinta noite em Paris, ao regressar de lauto jantar – escargots, ostras e confit de cannard – já no quarto do hotel, fui tomado por excruciante dor no hálux direito, bem junto à unha, dor esta que, além de intensíssima, tinha caráter latejante, sugerindo-me que o dedo estava prestes a explodir.
Solicitei a prestimosa ajuda de minha esposa, que se levantou, acendeu as luzes do aposento, e examinou cuidadosamente o órgão doente. Seu diagnóstico foi instantâneo, peremptório, inapelável, definitivo. E cruel:
– É bicho-de-pé!
– O quê?!!! 
– Isso mesmo que você ouviu, Alvarinho. Bicho-de-pé, também conhecido como batata baroa, bicho, bichô, bicho-de-cachorro, bicho-de-porco ou bicho-do-porco, bicho-boco, bicho-do-pé, bitacaia, chique, chitacaia, dengoso, espinho-de-bananeira, esporão, jatecuba, matacanha ou bitacaia, djigan, moranga, nígua, olho-branco, olho-de-pinto, pique, piolho-de-faraó, pitxoca ou pitxoka, pulga-da-areia, pulga-de-bicho, pulga-do-porco, pulga-penetrante, sico, taçura, taçuru, tatarné, tuçuru, tunga, tunguaçu, vitacaia, xiquexique, xíquia, zunga, zunge, zunja. Quer também o nome científico? Tunga penetrans.
Nem perguntei como é que ela sabia aquilo tudo; mas sabia que ela foi criada na roça, e que devia estar falando por experiência própria.
Sem qualquer outro comentário, Efigênia, minha mulher, tomou de uma agulha de costura, dessas fornecidas pelos hotéis para rasgões imprevistos e queda de botões, e começou a escarafunchar meu dedo sem piedade.
– É preciso tirar a batata.
– Batata? Que batata?
Ela não se deu ao trabalho de responder nem interrompeu a operação, continuou escarafunchando – perdoem-me os amigos, mas não há termo melhor que possa descrever aquela função – até que exclamou, após intermináveis minutos:
– Saiu! Veja a batata!
Claro que eu não quis nem olhar. Porém, o latejamento desapareceu como que por encanto, restando-me no dedão uma enorme cratera!
– E onde foi que eu peguei isso, Efigênia?
– Então não estivemos na fazenda do meu avô dois dias antes de viajar, criatura?
É verdade, tínhamos estado na roça. Mas o problema agora era o pavor de que meus amigos ficassem sabendo deste infortúnio – melhor chamar logo, deste vexame.
Claro que ficariam sabendo. Efigênia haveria de contar às amigas, e a notícia logo se espalharia como rastilho de pólvora.
Então decidi contar eu mesmo, implorando pela misericórdia de vocês, meus queridos amigos, para que não espalhem a notícia: Alvarinho Foi A Paris E Precisou Ser Operado De Bicho-De-Pé!
Oh! miséria de vida.

            Dois meses após o sucedido, Alvarinho já havia perdido o verniz de humildade adquirido com a traumática experiência, retomando a gabolice de sempre. Pau que nasce torto...





6 comentários:

  1. Maravilha! Isso é que é uma historinha divertida e bem contada! Sorte que não deve ser verídica...

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  2. Alvarinho provavelmente não desfrutou da tão falada,cantada e decantada na roça coceira deliciosa proporcionada pela D. Tunga. Dizem que deitar na rede e coçar um dedão com bicho=do=pé é algo que todos deveriam passar por isto! Louco de volta , que prazer.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bicho de pé em Paris não é muito chic!!! Ninguém merece...

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