segunda-feira, 16 de março de 2015

Infância, de Carlos D. de Andrade


Infância

A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a do Robinson Crusoé.

                                                                                    C. D. A.

            Na postagem anterior deste blog, em que falei do renascimento de José J. Veiga, citei o prefácio de Silviano Santiago, que mais parece um ensaio, e que não pode deixar de ser lido mesmo por aqueles que detestam prefácios.
            Como salientei, Santiago faz interessantíssima comparação entre o conto A Ilha dos Gatos Pingados, de Veiga, e o poema Infância, de Carlos Drummond de Andrade. Por esta razão, transcrevo aqui o poema de Drummond, extraído de Alguma Poesia (em Carlos Drummond de Andrade, Poesia 1930 – 62, edição crítica, Cosacnaify, 2012).
Santiago afirma:

“O propósito da criança é não só o de domesticar por conta própria as divergências e os entraves criados no ambiente familiar e na vida comunitária como também o de endireitar responsavelmente seu “estar no mundo” a fim de orientar seu projeto de vida em todo conhecimento de causa.”
           
(Em tempo, não posso deixar de registrar minha admiração, quase gozo, quando leio um período desta extensão sem uma vírgula sequer! Isso é para quem sabe...)
As pobrinhas considerações que se seguem não se comparam às de Santiago, mas são minhas, e como sou o dono do blog...
O poema tem início com o registro da solidão do menino - entre mangueiras - , pois o pai está ausente e a mãe ocupada. (Quem nunca viveu esta experiência na infância?) A diferença entre tantas infâncias reside no fato de que o menino do poema já era um leitor, um bom leitor, capaz de enfrentar histórias compridas e bem elaboradas como a de Robinson Crusoé. Com isso ele era capaz de enfrentar a solidão, exercitando a fantasia, a forma primordial pela qual toda criança aprende a pensar.
O poema prossegue com uma voz muito antiga, ancestral mesmo, vinda do "tempo da senzala", onde sempre era possível encontrar algum afeto, mesmo quando pai e mãe não estavam disponíveis. (Quem não se lembra de uma babá amorosa?) Para o bebê, o leite forra o estômago e aquece a alma! Para a criança do poema, é o café gostoso que alimenta.
O berço provavelmente já foi daquele menino; agora é do irmão caçula, que lhe roubou a primazia. A mãe agora vela outro sono. “Psiu... Não acorde o menino”, quase uma repreensão, é o atestado de que agora o reizinho é outro. A mãe suspira fundo, mas quem sente a dor da perda é o menino do poema.
Portanto, ele já tem sua própria história, feita de alegrias e tristezas, de amor, frustrações e solidão, para ele – acaba de descobrir – uma história mais bonita que a de Robinson Crusoé. Bonita porque ele descobre que já sabe pensar.
            O poema é curto, mas nele cabe todo o sentimento da infância de todos nós.

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