segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O dom


             Um filme é apenas um filme, dirá o leitor, porém cada expectador vê o filme – mais precisamente uma determinada cena – que lhe interessa, ou que pode ser visto por ele.  
Há uma cena do filme Sniper americano, dirigido pelo grande Clint Eastwood, campeão de bilheteria nos EEUU, que da o que pensar. Logo no início do filme o pai sai com o filho pequeno, para ensiná-lo a caçar. De repente, o aprendiz, com um tiro certeiro, atinge a presa mortalmente, até com certa facilidade. Ao que o pai acrescenta, passando-lhe a mão sobre  a cabeça:
            – Você tem o dom!
            Fico pensando na possível repercussão que uma fala como esta há de ter sobre a mente de um menino, diante de seu pai-herói. Dom para que? Para matar? Para ser um caçador? Que tipo de caçador? Caçar o quê ou quem?
            No filme, o filho depois de adulto não se encontra na vida, a não ser após alistar-se na tropa especial que irá combater na guerra do Iraque, exatamente na função de um atirador de elite, um verdadeiro caçador. O desafio maior se estabelece a partir do fato de que também há um franco-atirador iraquiano, que precisa ser eliminado a qualquer custo.
            Na vida real, a mente destes snipers parece ser gravemente afetada pelos traumas acarretados por uma atividade violenta, destrutiva, solitária, desumana. Portanto, não se trata de um dom que deva ser estimulado.
            E haverá dons que devam ser estimulados?
             Talvez os artísticos.
            Até que ponto a decisão de tornar-me um cirurgião (antes de optar pela Psicanálise), foi influenciada pelos constantes comentários de minha mãe, sobre minha capacidade para consertar aparelhos elétricos danificados, limpar e lubrificar a máquina de costura, manusear determinados brinquedos, enaltecendo sempre uma habilidade manual da qual eu nem suspeitava? Parece que a ouço dizer:
            – Você tem o dom...
            O tema “como educar os filhos” tem ocupado espaço neste blog já faz algum tempo. Parece-me inesgotável, especialmente quando dirijo meu olhar para minha própria vida. Há quem dê a este exercício o nome de autoanálise. Nessa altura de vida, nem sei se isso faz algum sentido. Talvez o faça, até a hora da morte.
Ah!, a Metafísica, diria Fernando Pessoa...
            

Um comentário:

  1. Mesmo que não verbalizem, os pais tem o ´dom´ de influenciar os filhos - para o bem e para o mal. E mal tomam consciência de seu extraordinário poder - do contrário, tomariam mais cuidado.

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