quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O ducentésimo microconto


Baseado em fatos reais.

Homem, 32, desempregado, joga videogame numa lan house, sem parar nem para comer. Após 3 dias é encontrado morto, debruçado sobre o teclado.
           
Com o microconto acima, o Loucoporcachorros chega à histórica marca de 200 microcontos publicados. O mote é oportuno, sugere que não se deve passar muitas horas em frente ao computador, isso pode ser mortal. Daí a relevância do microconto: rápido, rasteiro, no canto em que o goleiro não está!
Afinal, o que é um microconto? Alguns o chamam de miniconto, ou até de nanoconto; não há uniformidade de regras, a não ser aquela imposta pelo Twitter, que o limita a 140 toques. Quando surgem concursos de melhores microcontos, os organizadores estabelecem as regras, limitando o número de toques, letras ou palavras. (O Loucoporcachorros segue a regra do Twitter.)  O que não faz diferença alguma, pois os teóricos (ainda) não o reconhecem como gênero literário. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, nem mesmo registra o vocábulo microconto.
Os aficionados não cansam de enaltecer o que chamam de o mais famoso microconto do mundo, de autoria de Augusto Monterroso:

“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”

            Parece que Marcelino Freire concorda com isso, pois deu-lhe destaque em Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004), embora Monterroso tenha nascido em Honduras e vivido no México.
            Tão surpreendente quanto este “dinossauro”, ou ainda melhor, é o microconto de Manoel de Barros; reconheço que sou o primeiro e único a classificá-lo como tal, pois faz parte de livro de poemas (Poesia completa, Leya, 2010, p. 222), e não de contos:

“Ovo de lobisomem não tem gema.”

            Através destes dois exemplos – ainda em busca de uma definição –, podemos concluir que o microconto, muito mais que contar uma história, ele sugere uma história, e deixa que o leitor a complete.
            Franz Kafka escreveu em seu diário, em 6 de dezembro de 1922, o microconto perfeito, a ilustrar tudo o que foi pensado até agora:

"Duas crianças, sozinhas no apartamento,
entraram numa grande mala, 
a tampa fechou-se, não a conseguiram abrir
e morreram asfixiadas."

            O Loucoporcachorros inaugurou, tempos atrás, o microconto Baseado em fatos reais. Ao tomar conhecimento das notícias do cotidiano, percebi que muitas vezes não há diferença entre ficção e realidade. Publico o microconto e deixo para o leitor a decisão de acreditar ou não na realidade: Ah!, isso é conversa fiada, dirão alguns. Eis um bom exemplo de história baseada em fatos reais:

“Agora estou tranquilo, afirmou o assassino, preso após decapitar 6 pessoas.”

            Outro exemplo:

“Presidiário é escoltado até a delegacia mais próxima para registrar queixa
de roubo de celular ocorrido em sua própria cela.”

            Mais uma definição de microconto: a arte de cortar palavras. O exercício propicia o desenvolvimento da concisão. Nossos políticos bem que poderiam cultivá-lo, como antídoto para a prolixidade que os caracteriza. Filósofos e psicanalistas lacanianos também.
            O Loucoporcachorros publica hoje seu ducentésimo microconto, certo de que o formato se presta como uma luva à ligeireza da Internet, mais precisamente aos blogs. Mesmo sem o reconhecimento da Academia, acredito que o microconto já pode ser considerado um gênero literário. (Alô! mestrandos e doutorandos, eis um tema para uma boa tese...)
            Ítalo Moriconi, organizador de Os cem melhores contos brasileiros do século (Objetiva), à guisa de prefácio ao livrinho de microcontos organizado por Marcelino Freire, escreveu:

“É no lance do estalo que a cena toda se cria.
Na narrativa e na poesia.
Alguém já disse, poesia é uma frase
Ou duas e uma paisagem inteira por trás.”

São palavras que se ajustam perfeitamente à elaboração do microconto.

2 comentários:

  1. Duzentos! Não é pouco feito! Merece um volume em papel, capa dura e uma fotografia na capa que ilustre a grandeza dos pequenos. O prefácio pode ser este interessantíssimo texto de hoje.
    No último congresso panamericano de Esperanto que aconteceu em São Paulo, houve um festival de curtas que tinha filmes de 5 minutos, de 1 minuto e até de 10 segundos. Foi um sucesso: quanto mais curto, mais impressionante.
    Não se trata de pressa, mas de densidade.
    Muito bom!

    ResponderExcluir
  2. Certamente não teria chegado a esta marca sem seu precioso estímulo, Paulo. Obrigado!

    ResponderExcluir